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Livro Coletivo - Cap. 7

por ornitorrincoquantico, em 10.09.09

E este é o último capítulo que foi escrito. Originalmente a intenção era que o livro chegasse ao fim no décimo capítulo, mas ficamos sem autores que pudessem dar continuidade. Deixei toda a história aqui no meu blog para caso alguém se interesse em dar continuidade entre em contato comigo. Muita gente me cobra até hoje pelo final dessa história, espero poder concluir ela um dia.

 

 

Capítulo 7

Encurralado

Marcelo Pacheco de Souza

 

            – Ricardo? É você? – perguntava Vandely do outro lado da linha.

            – Claro que sou eu. Você precisa me ajudar...

            – O que está acontecendo?

            – A polícia está aqui me procurando e eu não sei o que fazer. Eles estão me acusando de ter matado o Jefinho e ameaçando invadir minha casa.

            – Estamos indo. Tente ficar calmo que eu estou perto daí.

            - Oh sim, eu vou tentar manter a calma enquanto eles me arrebentam...

            Nisso um forte estrondo soa e a porta da casa cai pesadamente no chão, abrindo espaço para que os policiais invadam e invistam em sua direção. Ricardo não teve tempo de fazer nada. Ficou parado catatônico olhando a cena, aparentemente resignado. Um policial o derrubou, enquanto outro o algemava. Além deles, outros dois apontavam as suas armas em sua direção.

            – O que é isso?? – gritou Ricardo, num misto de medo e surpresa.

– Quieto! – gritou um deles – aqui quem faz as perguntas somos nós.

– Araújo! Magalhães! – gritou aquele que parecia ser o superior – Dêem uma busca no lugar enquanto nós revistamos o sujeito.

Ricardo já não conseguia organizar os seus pensamentos, apenas limitava-se a balbuciar queixas enquanto era revistado pelo que parecia ser dois lutadores de vale-tudo. Aquilo não podia estar acontecendo. Não é possível alguém ter a vida tão radicalmente mudada em tão pouco tempo, sem fazer a mínima idéia do que o levou a tal condição. A cada dia que passava ele parecia receber um novo golpe que o fazia repensar a sua vida, a sua situação. A pouco tempo a sua rotina era de uma monotonia total, agora cada minuto por vir era uma incógnita. “Graças a Deus as meninas não estão em casa”, pensou, tentando encontrar algo de positivo naquilo tudo.

Os policiais pareciam se divertir enquanto reviravam tudo em volta. Móveis e objetos eram quebrados sem a menor cerimônia, em busca de algo que Ricardo nem suspeitava o que fosse. Nisso, um deles retira algo do bolso de Ricardo e entrega para o chefe.

– Veja isso, tenente – diz o policial, enquanto entrega duas folhas de papel dobradas.

O tenente desdobra-as e ao ver do que se trata, seu rosto parece iluminar-se. Mostra-as  para Ricardo, perguntado com a voz carregada de sarcasmo:

– O senhor poderia me dizer o que é isso?

O coração de Ricardo pareceu parar. Tratava-se de duas folhas arrancadas de um livro. O mais surpreendente é que as folhas eram das páginas 11/12 e 21/22, sendo que na primeira, a página 11 estava completamente rabiscada e a palavra “eliminar” estava sublinhada na página 12. Na outra, estava sublinhado “imprevisto” na página 21, enquanto a 22 estava em branco. Num momento ele se lembra das páginas que faltavam no livro que caiu da bolsa da tal Josiane, naquela perseguição no hospital. Páginas que formam os quatro últimos dígitos de seu telefone, numa infeliz coincidência.                                                                                                                                                                                                                                                                                                             

– The Game Theory... – as palavras parecem fugir da boca de Ricardo em forma de um balbucio, uma súplica.

– Vejo que você sabe exatamente do que se trata, agora vamos dar uma voltinha – diz o tenente arrastando Ricardo para fora da casa.

- Mas o que está acontecendo? Eu nunca vi essas páginas na minha vida. – bradava sem despertar o menor interesse naquelas pessoas.

Ao chegar na calçada ele é atirado na parte traseira de uma caminhonete de carga, os dois brutamontes entram e sentam-se ao lado dele. As portas ainda nem estavam completamente fechadas e o veículo arranca “cantando pneu” e deixando para trás um cheiro forte de borracha queimada.

Foi então que um pensamento aterrorizante surgiu na mente de Ricardo, levando-o a temer por sua vida: em momento algum os supostos policiais mostraram qualquer identificação, e o que é pior, se eles são mesmo quem dizem ser, por que estão dirigindo essa caminhonete e não uma viatura? Quem seriam aquelas pessoas?

– Pra que delegacia estão me levando? – pergunta, já com medo da resposta. E essa vem em forma de uma sonora gargalhada.

– Não se preocupe – responde um deles – eu tenho certeza que você vai apreciar muito as acomodações.

– Mas eu...

Ricardo não pôde terminar a frase, sentiu um duro golpe na cabeça e tudo escureceu e ficou em silêncio.

 

*          *          *

 

Ricardo acordou com uma generosa borrifada de água no rosto, mas não conseguiu enxergar nada à sua volta, pois estava vendado. A sua cabeça doía muito e sua posição não era das mais confortáveis: encontrava-se amarrado a uma cadeira, com uma corda grossa que machucava a seus punhos, sua cintura e seus tornozelos. O local era muito frio e a umidade parecia grudar em sua pele. Pelos ruídos externos, teve a impressão de que o lugar era afastado da cidade, não se ouvia vozes nem barulho de trânsito, apenas um distante cantar de pássaros e ruídos de animais comuns em uma fazenda.

– Onde estou? Quem está aí? – perguntou Ricardo, completamente confuso e apavorado.

– Isso não vem ao caso. A questão agora é por quê você está aqui. E já te adianto que a tua situação é muito delicada. Todos os acontecimentos têm convergindo na tua direção e eu não costumo acreditar muito em coincidências.

Ricardo reconheceu algo de familiar naquela voz, mas não conseguiu identificar. Era uma voz feminina que com certeza ele já ouvira antes. Mas existia algo que não se encaixava e ele não conseguia imaginar o que era.

– Que acontecimentos? – sua voz soava embargada, quase suplicante - Pelo amor de Deus, eu não faço a mínima idéia do que você está falando!

– Não creio que isso seja verdade. Há tempos que eu venho te observando e sempre quis acreditar na tua inocência. Claro que o fato de eu nutrir uma certa simpatia por você, que sempre me tratou bem, pode ter afetado o meu julgamento nesse tempo todo, mas depois do seu encontro com a Vanderly e o Salomão, confesso que a minha opinião começou a se formar. Eu tenho ainda, uma pequena esperança de que você não saiba exatamente no que está envolvido, mas não deixarei que meus sentimentos atrapalhem a minha percepção. Agora, se você me der licença, eu vou me ausentar  por alguns momentos. Logo, logo eu volto e aí você vai me contar toda a história.

Ricardo ouve o barulho da porta se fechando e sons de passos se afastando até ficarem inaudíveis. Novamente estava só na sala ou o que quer que seja o local em que se encontrava. Ele precisava se lembrar de quem era aquela voz. Por que ela dissera que ele sempre a tratava bem? Isso só reforçava a idéia de que era alguém próximo.

Passado algum tempo, ouve-se o barulho da porta abrindo-se novamente e sons de passos aproximando-se. Mas dessa vez aparentava ter mais pessoas.

– Sentiu saudades? – perguntou aquela voz familiar em tom irônico – Eu te trouxe algo pra comer e beber, em troca de algumas informações.

– Eu já disse que não sei de nada – a sua voz já não tinha mais força. O desânimo começava a vencê-lo. Ele não fazia idéia de a quanto tempo estava sentado naquele lugar, mas pela fome, sede e dormência de quase todo o seu corpo, indicavam que já fazia muito tempo. Não havia músculo de seu corpo que estivesse dolorido.

– Pôxa, mas você está péssimo! Não tem dormido direito? – perguntou rindo – Peço desculpas pelas acomodações não serem as ideais. Eu detesto a idéia de que não me considerem uma boa anfitriã, mas infelizmente a situação levou a isso. Agora, deixemos de formalidades, vou te dar de comer pra você clarear as tuas idéias e me contar a verdade. Eu vou te desamarrar, mas você não se anime muito que eu estou bem acompanhada, portanto nem pense em tentar nada.

Ele se sentiu aliviado de ser desamarrado e ter a venda retirada. Nisso, percebeu que não seria aquele o momento em que ele acabaria com a dúvida sobre a dona da voz, pois ela estava usando uma máscara de Papai Noel, “nada como ter bom humor”, pensou. Ao seu lado os dois “policiais” que o acompanharam durante a viagem, armados. Certamente era essa a boa-companhia citada.

Ricardo devorou a comida, um enorme sanduíche e uma garrafa de água mineral em questão de segundos. Aquilo, realmente lhe deu um novo ânimo. Agradeceu educadamente, mas a mulher não estava muito preocupada com amenidades.

– Eu quero que você me explique o que significa isso? – disse acintosamente, enquanto mostrava as páginas do livro.

– Eu juro que nunca botei a mão nisso.

– O fato de ter sido encontrado no teu bolso nos leva a crer que isso não é verdade. Pelo o que eu pude perceber, o Jefinho era uma “imprevisto” a ser “eliminado”, certo?

– Mas porque eu iria querer matar ele?

– Obviamente pelo fato de vocês terem descoberto que ele era um agente duplo.

– Vocês? Agente duplo? Do que você está falando?

– Essa sua insistência em se fazer de desentendido está começando a me aborrecer. Mas vamos lá: eu sei que você sabe sobre o projeto Cybele e os Ceifadores, embora eu não goste dessa denominação. O Jefinho foi infiltrado por nós para nos contar os passos que vocês estavam dando e pagou com a vida.

– Eu já disse que não faço parte disso. Aquelas folhas devem ter sido plantadas. Tem alguém querendo me incriminar.

– Talvez até pudesse ser. Talvez o fato das páginas formarem o número do teu celular seja uma mera coincidência, mas me explique então por que você ligou para o Jeferson menos de uma hora antes dele ter morrido.

– Eu não liguei para ninguém. Eu nem ao menos sei qual o telefone dele.

– Não é o que diz o registro de chamadas do seu celular – disse a sua “anfitriã” mostrando o telefone de Ricardo.

– Mas eu tinha perdido ele naquele dia.

– Eu sei, quer dizer, pelo menos era isso o que você queria que nós pensássemos.

– Como assim? Quem é você afinal??

– Bem, acho que não tem mais motivo para eu esconder a minha identidade, deixa eu acabar com essa tua dúvida. Pode ser que assim você perceba que não tem como me esconder nada.

A mulher tira a máscara, revelando o seu rosto. Ricardo não pode acreditar no que vê.

– Suzi? Você??

- Sô eu sim, dotô. Num recunheci a minha vóiz?

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publicado às 18:31

Livro Coletivo - Cap. 6

por ornitorrincoquantico, em 03.09.09

 

 

CAPÍTULO 06

 

“A Escolha”

Jonas

 

 

 

 

Acordar normalmente não é algo muito agradável. Principalmente quando não se teve todo o tempo de sono que se gostaria. No entanto, para Ricardo, não há tal sensação desagradável. Na verdade, o que há é uma sincera e profunda esperança de que o ocorrido nas últimas  horas, ou melhor, nos último momentos em que ele desfrutou de sua  plena consciência, não passou de uma armadilha psíquica que sua mente criou como fuga para a resolução das inúmeras questões obscuras que se apresentam à sua frente.  Mas no fundo, ele sabe que não seria capaz de tal façanha; no fundo ele sabe que foi tudo real. E, mesmo que ele quisesse se enganar, uma dor lancinante corta qualquer possibilidade de continuar imerso em pensamentos, trazendo-o de volta à realidade. Sua realidade. Ele surpreende-se por pensar assim, há poucos dias tal situação jamais poderia ser descrita como  verossímel em sua vida. Isso o faz pensar em algumas das verdades que seu pai costumava dizer: “- São as pequenas decisões que podem  mudar sua vida para sempre.” Ele queria muito que seu pai estivesse ao seu lado agora.

- Até que para um ‘não-médico’ eu fiz um curativo bem eficiente, não? Questiona Salomão em tom irônico, com seu tradicional sorriso cortando-lhe  o rosto.  A visão de Ricardo ainda está meio prejudicada, pelo efeito de algum anestésico deduz ele, mas a voz lhe é familiar demais para que possa ser confundida.

- Você?!?!?!? Na boa cara, eu já to cansado desse história toda. Primeiro me  vigia a ponto de me fazer acreditar que é um inimigo, depois quando eu to na pior, tu me ‘salva’ e me traz para cá. Afinal qual é a tua? - Questiona Ricardo em um tom nada amistoso.

- Ora senhor Ricardo, não é evidente que eu estou tentando ajudá-lo? A situação estava se dirigindo a um ponto insustentável, e sua vida - assim como a de sua família devo dizer - passou de correr riscos para ser tangivelmente ameaçada. Tive de intervir. 

- Mas por que? Por que eu? O que tu ganha fazendo isso? - Insiste nos questionamentos Ricardo, com uma força e uma clareza de raciocínio que surpreendia a si próprio. E a Salomão também, pelo que podia perceber.

- O que vou ganhar com isso? Interessante tua pergunta. Quando foi que deixasse de acreditar em altruísmo? -  Questiona Salomão.

-Não tenho tempo para isso Salomão. Minha vida está se destruindo e eu preciso consertar tudo. Se você quer mesmo me ajudar, me diz o que tá acontecendo. - Pede Ricardo, em um tom já civilizado.

- Ainda é muito cedo para que eu te explique a real situação. Definitivamente não estas pronto para ouvir. O que posso te transmitir, é que foste selecionado para uma tarefa, foste escolhido para tornar-te um de nós. - Exclama Salomão, dando ênfase à palavra ‘escolhido’.

- Escolhido?!!?!? Para fazer o que? Se vocês realmente me selecionaram para algo, devem saber que não vou fazer nada de errado. - Dispara Ricardo, em tom defensivo.

- Errado? E o que é errado, senhor Ricardo? Certo e errado, bom e mau, são apenas valores simbólicos e discutíveis, fixados no âmago dessa sociedade decadente, que servem apenas para servir de controle de seus membros. Exatamente, a massa se mantém presa a esses conceitos tornando-se inútil. Os grandes ícones são sempre os indivíduos; são eles que criam a ‘contra-doutrina’, são eles que motivam a massa. E são eles os que mais naturalmente conseguem se libertar das amarras  societárias. Assim  tem sido desde o início dos tempos. A sociedade cria estigmas, verdadeiros tabus que definem a maneira pela qual deve-se agir. Envolvem tais estigmas em  prestígio, concedendo-lhes o status de valores. Atribuem à força primordial a criação de tais valores, consolidando assim a sua veracidade, tornando-os inquestionáveis. Os poucos seres pensantes que conseguem escapar às amarras, são caçados discriminados; os transformam em criminosos, para assim reprimir ainda mais a massa, que permanece inerte e imersa na ignorância. Isso ocorreu com grandes indivíduos, que graças à frustração, que em decorrência da inércia a que foram submetidos acabaram por se perverter. Foi assim com Jack o Estripador, com Hitler, e tantos outros poderosos e pensantes ícones de nossa cultura. A necessidade de pessoas com tamanha força se comprova com a imortalização dos mesmos frente nossa cultura.  - Ricardo permanece em silêncio e atônito em face às fervorosas declarações de Salomão, que continua:

- [...] a força dos indivíduos se mede não só pela firmeza de seu caráter, mas também por sua ousadia e carisma. - O monólogo parece ser interminável, Ricardo já está cheio, mas faltam-lhe forças para interromper o homem. Quando, seus pensamentos (assim como o discurso de Salomão) são interrompidos por uma poderosa e grave voz feminina:

- Salomão! Já chega. Você está assustando ainda mais o Ricardo com esse monólogo desnecessário. Pode deixar, eu cuido dele. - diz Vanderly, chegando ao local, envolta na luz radiante do Sol que adentra à sala.

- Desnecessário?!?!? Não, eu diria elucidante. Mas, seja como for, deixarei o rapaz a seus cuidados senhorita. Senhor Ricardo, creio que nos veremos em breve! Com essas palavras, Salomão deixa o local.

- Vanderly, o que você está fazendo aqui? No que você está metida? Vocês são uma sociedade secreta?

- Calma Ricardo, está tudo bem.  Interrompe Vanderly, em um tom calmo e bastante amistoso.

- Não somos uma sociedade secreta, ao menos não nos consideramos isso. Somos apenas um grupo de pessoas que precisava relaxar, que precisava sair um pouco fora do ritmo de vida que levamos, e para isso criamos uma espécie de terapia alternativa.

- Terapia alternativa?!? - Interrompe Ricardo.

- Isso mesmo, tu até já participou de uma reunião mais, digamos, explícita. Lembra? Antes que Ricardo se manifeste, Vanderly continua: - Desculpa, não queria te deixar constrangido. A verdade é que a Gorda e seu 'agenciamento de garotas' na verdade é apenas uma fachada para as nossas reuniões. Fachada que nós não construímos, mas nos foi imposta pelas pessoas.

- E você não se importa com isso? Pergunta Ricardo.

- Que diferença faz Ricardo? A grande verdade é que nos já paramos de nos importar com o q dizem e/ou pensam de nós. O grande problema que enfrentamos é a estrutura social baseada na hipocrisia, na falsidade. Todo dia, para não dizer a todo momento, somos forçados a suprimir nossos reais sentimentos, nossas verdadeiras opiniões, para podermos sobreviver no nosso meio social. Muita gente passa a vida inteira nesse estado, e acaba sendo consumida pela hipocrisia. Nós nos recusamos a isso; podemos até nos submeter durante o dia a dia, mas isso não importa mais! O que importa é o que estamos construindo; uma espécie de sociedade em que a verdade é encarada, em que não há julgamentos, em que somos livres para agir. É quase um retorno ao estado natural do homem, mais ou menos como Rousseau costumava descrever. Só que é algo muito mais elaborado, nós temos todo o conhecimento, toda a bagagem de milênios de desenvolvimento. Agora Ricardo, imagina a volta do homem ao seu estado puro, sem as amarras sociais, sem toda a máquina político-capitalista, sem a submissão à globalização hegemônica em que vivemos, mas com o conhecimento e a experiência de vida de seres sapientes e pensantes, que já dominam o mundo natural. Imagina o quão próspero esse mundo seria!

- Isso é tudo muito interessante, mas e eu Vanderly, o que eu tenho a ver com tudo isso? E, principalmente, o que vocês tem a ver com tudo o que está acontecendo na minha vida? - Pergunta Ricardo, já meio impaciente.

- Desculpa! Falei do Salomão e acabei eu mesma fazendo um discurso longo e sem propósito.  Diz Vanderly, repreendendo a si mesma.

- A grande verdade Ricardo, é que nós temos um projeto, algo gigantesco que poderá consolidar o que nós tantos queremos, que poderá construir nossa 'comunidade alternativa' e fazer com que sejamos aceitos.

- Deixa eu adivinhar, o nome do projeto é 'CYBELE'? Pergunta Ricardo em um tom irônico.

- É sim, eu sabia que você já estava sabendo de algo.

- Então quer dizer que...

- Não! Não é nada disso q você está pensando! Nós não matamos o Jefinho, não somos os responsáveis diretos pelo assassinato. Interrompe Vanderly.

- Como assim responsáveis diretos?! Isso não tira a culpa de vocês! O que vocês fizeram com o cara então? Fala de uma vez! - Ricardo já completamente alterado!

- Calma Ricardo, você acha que eu participaria de algo que tiraria a vida de alguém?

- Eu já não sei mais nada Vanderly! Há pouco tempo eu afirmaria que jamais seria um suspeito de assassinato!

- Tudo bem Ricardo, eu entendo o teu nervosismo, mas deixa eu tentar ajudar, afinal é para isso que eu estou aqui! - Diz Vanderly, em um tom suave. Ela vai se aproximando aos poucos de Ricardo, e o abraça. O primeiro impulso dele é resistir, mas no fundo era exatamente isso que ele queria e precisava. Alguém que o confortasse. Cláudia antes era capaz de fazer isso com um olhar, ele lembra, mas atualmente a única coisa que conseguia ver nos olhos de sua esposa era insatisfação e raiva. Um ódio que ele não conseguia sequer entender, e com que tinha aprendido a conviver. Vanderly percebe que ele está envolto em pensamentos e que seus esforços para acalmá-lo estão sendo eficientes!

- Ricardo, você precisa ficar por dentro do que está acontecendo, e eu tenho pouco tempo para ficar aqui. Tais pronto para ouvir o resto?

- To sim, pode falar.

- Então, para que a CYBELE se torne uma realidade, a gente precisa de muita coisa, mas muita coisa mesmo! Confesso até que necessitamos de uma combinação de eventos independentes e situações manipuladas para q ocorra. Ou seja, precisamos da perfeição. Não tínhamos problema algum em arranjar tudo que precisávamos, até pouco tempo. Um dos nossos membros que sempre teve uma linha radical de raciocínio, tentou nos imbuir de um fundamentalismo que caracterizava uma seita, algo que nunca quisemos ser. Após muitos conflitos ideológicos, ele resolveu cair fora. Nós continuamos nossas atividades na boa, sem sequer ouvir falar dele.  Daí algumas coisas estranhas começaram a acontecer; nós começamos a ser sabotados! Sim, por incrível que pareça, aquele insano conseguiu convencer muita gente influente da nossa existência, e ainda conseguiu que fôssemos considerados uma ameaça. Assim, nasceu então o que conhecemos pelo nome de ‘CEIFADORES’. Uma espécie de associação ideológica que pretende mostrar e acabar com os podres da sociedade, ‘ceifando’ do organismo social suas partes mais nocivas: os grupos de elite que exercem uma efetiva atividade manipuladora. E, por pura vingança, ele escolheu a nós como seu primeiro alvo.

- Isso tudo que tu está falando ainda não esclareceu em nada a morte do Jéferson ou a minha ligação com tudo isso! – Interrompe Ricardo.

- Calma, eu vou chegar lá! – Continua Vanderly:

- Nós ficamos com receio, com medo de sermos perseguidos e atacados por parecer algo que na verdade não somos. Então passamos a investigar tudo sobre o tal indivíduo. Descobrimos que a biblioteca perto do Banco em que trabalhas servia como um local de troca de dados para os Ceifadores. A comissão que foi organizada para saber como vamos lidar com essa situação achou melhor colocar alguém lá para ver se a gente monitora as atividades deles. O Jefinho se ofereceu e foi muito bem sucedido. Descobrimos que as informações deles são codificados e que existe um livro de matemática, na verdade é um curso já que são vários volumes, que passa de mão em mão, provavelmente com instruções, uma vez que os Ceifadores, frente ao que se sabe, não agem como um grupo; eles apenas troca informações.  Acontece que a tal Jô começou a suspeitar do Jefinho, e o colocou em uma situação que o levou a ser descoberto. Foi aí que vimos o que o lance não é só nos expor, e nos caluniar. O Ivan está com muita raiva, e ele fez do Jefinho um aviso para nós. – Vanderly respira fundo, mostrando-se muito abalada com a situação, e continua:

- Esses caras se revelaram pessoas perigosas, e estão criando ciladas para os nossos membros. Dois de nós já foram presos por causa de situações armadas, e, ao que parece, por algum motivo desconhecido, é o que eles iriam contigo. Só que o Jefinho interceptou essa informação, e por isso nós conseguimos te resgatar.

- Vanderly isso tudo soa louco demais! – Diz Ricardo.

- Eu sei, mas você tem que acreditar em mim! – Suplica Vanderly.

- Eu to tentando, mas tem coisas que não se encaixam! Por exemplo, quando eu tava atrás da tal Jô, lá n hospital, ela fugiu numa viatura da Gorda!

- Viu Ricardo? É exatamente coisas assim que eles fazem, criam situações para confundir. O Ivan sabe da Gorda, e usou isso para te deixar com dúvidas em relação a nós! – Afirma Vanderly. Ricardo fica pensativo, mas no fundo ele realmente quer acreditar em tudo que a Vanderly disse. Afinal, significaria que ela é uma boa pessoa e que se arriscou para ajudar. E ainda por cima, parece gostar dele.

- Ricardo, agora que eu já te contei tudo o que querias saber, nós precisamos conversar sobre o que eu vim até aqui te dizer. – Diz Vanderly em um tom bastante condescendente.

- E o que é isso exatamente? – Ricardo já preocupado.

- Bom, a questão é que tu ta sendo apontado como o principal suspeito do assassinato do Jefinho. Já criaram até uma teoria maluca de que vocês dois estariam apaixonados e disputando uma prostituta que trabalhava nas festas que a Gorda promove.  E, estão dizendo que por isso tu cometeu o crime.

- Como é que é?

- E isso não é tudo. A Cláudia, tua esposa já foi procurada pela polícia e deu um depoimento relatando como o relacionamento de vocês estava comprometido, como ela já não te reconhecia mais. Além disso, disse que tu andavas violento ultimamente, e que chegasse inclusive a bater nela. Isso é verdade? – Questiona Vanderly.

- Não, quer dizer, é verdade sim. Mas...

- Não precisa explicar nada Ricardo – Interrompe Vanderly. E continua:

- Eu só perguntei por temer que ela esteja envolvida. Ela também falou que tu perdeu o celular na semana do assassinato, e que logo em seguida encontrasse. Também mencionou que andavas recebendo umas ligações estranhas e que, embora ela não tivesse certeza, acha que na noite do crime tu recebeu uma ligação assim. A situação ta bem feia Ricardo, o circo ta armado e tu sem dúvida caiu direitinho. Nós temos somente uma alternativa a te oferecer: tu entra de vez para o nosso grupo. Uma vez conosco, nós passaremos a confiar em ti, e vamos movimentar nossos contatos com o pessoal de dentro da polícia e da promotoria, se for preciso, para te tirar dessa. Só que não vai ser tão simples, e nós temos fortes suspeitas em relação à Cláudia, por isso tu precisaria deixá-la! E não é só; é bem  provável que tenhas de mudar toda a estrutura da tua vida.

- Vanderly, eu não posso fazer isso. Não posso simplesmente abandonar minha família e tudo o que eu construí por causa de uma insanidade dessa!

- Eu já esperava por isso. Imaginei que essa seria tua reação, mas eu precisava tentar. – diz Vanderly sem esconder a tristeza. Ela o abraça firme e diz:

- Eu não vou desistir tão fácil de ti, por isso vou te dar um dia para pensar. Tem um táxi na rua esperando para te levar onde quiseres, assim como coloquei o número do meu telefone no bolso da tua camisa. Pensa bem em tudo, analisa a situação. Infelizmente, foi a tua vida que definiu os caminhos que deves tomar; e ambos te levam para o desconhecido. Espero que dê tudo certo!

         Ricardo embarca no tal táxi com a mente borbulhando. Ele ainda não sabe o que fazer ou como vai lidar com essa situação, no momento só pensa e ir para casa e ver suas crianças e sua esposa. E é isso que ele faz. Durante todo o caminho as palavras e os relatos da Vanderly povoam seus pensamentos. Ele não consegue imaginar como sua vida se tornou um livro policial barato, aliás, ele sequer se conforma com essa situação. À medida que o carro vai chegando na sua vizinhança Ricardo começa a ficar cada vez mais nervoso. Suas pernas começam a ficar trêmulas e ele passa a suar frio. Ao chegar em frente de casa, chega a perder o ar ao ver tudo fechado. Um milhão de coisas passam por sua cabeça, ele respira fundo e desce do táxi. Antes de sair completamente o motorista pergunta:

- Tem certeza de que vai ficar aqui?

- Tenho sim, aqui é a minha casa! – Diz Ricardo. O carro vai embora, e ele fica imaginando o quanto essa afirmação deveria deixá-lo mais seguro, mas o medo de como seus familiares vão estar acaba sendo bem maior do que o conforto de voltar para casa. Ele abre a porta e vai entrando devagar, quando é surpreendido por um grito de pânico!

- Meu Deus Ricardo, quer me matar?!?!?!?!? – Pergunta Cláudia aos berros!

- Desculpa, eu não fiz por mal. Cadê as meninas?

- Na casa da minha mãe, e é para lá que estou indo também! – Responde Cláudia em um tom ríspido, e continua:

- Eu não sei o que acontece Ricardo, no que tu te meteu e com quem tu te meteu, só sei que EU na vou passar por mais nenhuma humilhação por tua causa, nem eu, nem as meninas!

- Mas Cláudia, eu não fiz nada, tu não vai me dar nem um voto de confiança porra?!?!?

- Não, eu cansei de esperar uma atitude decente tua, nem mesmo nessas horas tu consegue ser alguém firme e decente. E, esse rolo, tu vai encarar sozinho!

- Tu não pode afastar as meninas assim de mim!

- Ah é? Por que tu não entra com uma disputa pela guarda? Vamos ver se algum juiz concede a tutela das meninas a um possível assassino! E pode te preparar para desembolsar uma boa pensão!

- Se tu vai, cala a boca de uma vez e SOME!!!!! – Grita Ricardo.

         Cláudia não responde, apenas bate a porta. Ricardo olha para o chão e vê que há uma correspondência para ele do Banco em cima do sofá. A carta, escrita pela sua chefe é uma imposição de férias, para que ele resolva o problema e volte logo ao serviço. Ela acredita na inocência dele, e está torcendo que ele saia dessa rápido. Mas nem a amizade de Cristina consegue animá-lo! Ricardo está desolado somente com a hipótese de não poder vê-las! Ele senta na cama da Isadora e fica ali pensando por meia hora. Quando, batem na porta e gritam:

- Ricardo, e a polícia! Sabemos que estais aí! És suspeito de assassinato e vais nos acompanhar até a delegacia. Abre a porta ou nós iremos entrar!!!

         Ricardo entra em pânico, pega o celular liga para o nº que Vanderly:

- Alô, Vandery? Eu preciso de ajuda...

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publicado às 23:48

Livro Coletivo - Cap. 4

por ornitorrincoquantico, em 19.08.09

 

Capítulo 04
Um Dia no Hospital
 
Por Giuliano Mendonça
 
 
 
 
_ Ambulância chegando! Vamos abrir caminho aí pessoal!
_ Maca, rápido! Rápido gente!
No instante seguinte, a Caravan da prefeitura invadia com estardalhaço o pátio da emergência do hospital São Pedro e São Paulo.
_ Ro!
_ Graças a Deus você está aqui! Que coisa horrível! Horrível! Ela estava bem na minha frente assistindo televisão e, de repente, caiu no chão e começou a se contorcer... a ter convulsões... a língua enrolada... achei que ela fosse morrer ali na minha frente. Graças a Deus conseguimos esta ambulância para trazê-la.
_ Como ela está?
_ Ela foi medicada no caminho. O dr. Santana disse que ela está estável, fora de perigo por enquanto. Mas eles precisarão fazer mais exames pra tentar achar a causa.
_ Mãe? Fala comigo mãe!
_ Agora não dá, Rick. Ela está sedada. Temos que esperar eles terminarem.
 
 
 
 
Purgatório... Eis uma boa comparação para sala de espera de hospital.
Ambiente absolutamente frio. Limpo. Não, mais do que limpo, estéril. Como se o mundo tivesse parado para aquelas pessoas que lá estão. Não importam o tempo lá fora, os problemas lá de fora, a vida lá fora. Só existe a espera. Espera em saber como se dará a transição que é esperada. Se o ente querido vai se curar ou vai piorar. Se os bebês vão nascer com saúde, se é menino ou menina. Ninguém pensa nem fala nada que não esteja relacionado com aquilo que é o motivo da espera. Contam-se histórias sobre aquelas pessoas, amigos relatam experiências parecidas que um dia já viveram, na tentativa de levar conforto e mostrar que isso pode acontecer com qualquer um. Dizem que antes de morrer a vida de uma pessoa passa por diante dos seus olhos. Na verdade, a vida dela também passa por diante dos olhos dos outros, que estão lá na sala de espera do hospital. E quem inventou a sala de espera fez um excelente trabalho. Um corredor branco, com um banquinho desconfortável e um relógio de parede. Ideal para dar a sensação de que aquilo não vai acabar nunca.
Lá estavam Ricardo, sua irmã Rosana e Cláudia, sua esposa, que por algum motivo ignorado insistiu em acompanhá-lo ao hospital. Estavam os três sentados lado a lado. Sem agressões e sem insultos, mas também sem amor, carinho ou um pingo de calor humano.
_ Cláudia... Você pode ir embora. Não adianta você ficar aqui igual urubu na carniça, ainda não vai ser hoje que você vai ter o prazer de ver minha mãe num caixão. Eu me viro sozinho por aqui. Alfinetou Ricardo, sem saber exatamente por quê.
_ Escuta aqui Ricardo... Cláudia preparou o revide. _ Deixa pra lá. E, para sua surpresa, desistiu dele. _ Depois a gente conversa.
Claro. A conversa sempre fica pra depois, pensou Ricardo. E ao pensar em conversa, se lembrou que já passava das oito da manhã e era melhor ligar para a Cristina e avisar que ia se atrasar pro trabalho.
_ Puxa, Ricardo. Sua mãe? Que coisa! Você precisa de alguma coisa? Eu vou até aí!
_ Não, Cristina. Não precisa. Acho que já está tudo sobre controle.
_ Chego num minuto. Aí a gente se fala.
Sua mãe, sua irmã, sua mulher e agora, sua chefe. “As mulheres da minha vida”, pensou Ricardo.
De repente, percebeu ao seu lado um homem alto, devia ter uns dois metros, mas bem magro. Careca, apenas dois tufos de cabelos grisalhos ao lado da cabeça, sobre as orelhas. Grossas sobrancelhas da mesma cor. Bem vestido, camisa branca, gravata e calças marrons. O jaleco branco e o estetoscópio em volta do pescoço denunciavam sua profissão.
_Senhor Ricardo?
_ Pois não?
_ Salomão Carlos, médico anestesista. A seu dispor. Soube o que houve com a sua mãe. Lamentável! Mas não se preocupe, nossa equipe é bastante competente. Cuidarão bem dela.
_ O senhor tem alguma notícia dela?
_ Infelizmente não. Ouvi falar do caso e passei para oferecer minha solidariedade. Mas posso procurar mais informações e lhe mantenho informado. Passar bem.
_ O senhor também... Sujeito estranho! Pensou Ricardo enquanto andava pelo corredor que ligava a sala de espera à enfermaria, caminhando um pouco para pensar.
O corredor era bastante escuro. Não tinha janelas e as lâmpadas fluorescentes estavam desligadas. O hall da enfermaria ficava em um patamar um pouco mais elevado. O acesso era feito por uma rampa com tapete de borracha. Logo em frente, havia um balcão de informações. À esquerda, os quartos ímpares, à direita, os pares. Atrás do balcão ficava a sala das enfermeiras que, por sinal, conversavam bem alto.
_ Ué, você já vai?
_ Vou, menina. Consegui troca de folga com a Rita hoje.
“Essa voz. Eu já ouvi antes”, pensou Ricardo, revirando o fundo de sua memória. “Eu a ouvi ao telefone... ao celular... É ELA! É a Jô, ou Cybele!” E subiu a rampa a passos largos, pulou por cima do balcão e entrou na pequena sala.
_ Ricardo, Você por aqui? Que surpresa!
_ Vanderly! As mulheres da sua vida. Olha só justo onde a Vanderly foi trabalhar.
_ Tudo bem com você? Está pálido?
_ Quem estava aqui com você?
_ É minha colega, a Josilene. Ué, Pra onde ela foi?
Ricardo percebeu que ao fundo da salinha havia uma porta que dava para o corredor da ala direita da enfermaria. Ele ouviu barulho de alguém correndo e disparou atrás, deixando a Vanderly falando sozinha.
Ao chegar ao corredor, viu que a moça já se encontrava próxima à parede do fundo, pôde ver apenas que ela era morena, de cabelo curto, usava calça azul clara, uma jaqueta branca e uma bolsa marrom de veludo a tiracolo. Rapidamente, ela virou a esquerda e abriu a porta que dava acesso às escadas, com Ricardo logo atrás. “Então Jô é de Josilene”, concluía.
Eles desceram ao segundo pavimento, Ricardo tinha cerca de cinco metros de desvantagem em relação à moça. A escada dava acesso ao corredor da ala de ortopedia. Logo em frente estava a sala de raios-X, que àquela hora da manhã estava lotada de gente. Havia pessoas sentadas nos bancos de plástico laranja localizados em ambos os lados do corredor, muita gente em pé, muletas, cadeiras de rodas, mães com crianças no colo berrando sem parar e o Ricardo e a moça fugitiva tentando se desembaraçar desta confusão.
Quando Ricardo estava já nos calcanhares de Josilene, quase alcançando seu braço esquerdo, sentiu seus pés deslizarem e perdeu o equilíbrio, indo de encontro a um tripé de suporte de bisnaga de soro que auxiliava um velhinho de camisolão a receber seus medicamentos. Ricardo foi ao chão levando junto o tripé e arrancando a agulha do soro da veia daquele senhor e fazendo um bocado de barulho. Era metal contra pedra e os gritos de dor do pobre ancião. Ao se levantar viu a gosma verde com pequenas bolhas brancas como se fossem miolos de pão mergulhados no leite. Tinha escorregado numa poça de vômito.
Uma rápida desculpa ao velhinho e de volta à perseguição, agora já em direção ao primeiro pavimento. A moça já deixara a escada e passava pela triagem do setor de emergência quase na porta de entrada das ambulâncias, ela tinha agora uma grande vantagem.
O caminho até lá, porém era em declive, com rampas para acesso de deficientes físicos, o que permitiu a Ricardo apanhar uma maca com rodinhas que estava encostada na parede e percorrer a todo vapor à distância que o separava de Josilene. Não sem antes esbarrar em alguns obstáculos pelo caminho. Os cestos de lixo voaram longe. Maldita reciclagem! Primeiro foi a de papel, depois a de metais e, por fim, a de lixo orgânico. “A faxineira vai me matar. Assim que eu sair da cadeia”. Pensou Ricardo.
A maca chegou na portaria e bateu no canteiro de flores que limitava a rampa de acesso das ambulâncias. Por sorte, não havia ninguém por perto. Com a batida, Ricardo deslizou pela maca e voou por sobre o canteiro, aterrisando bem em cima da Josilene.
Finalmente pode ver seu rosto. Bonita, por volta dos vinte e cinco anos, olhos castanhos e apele bem clara. Ou melhor, pálida. O pavor era visível em seus olhos.
_ Me solta!
_ Espera! Vamos conversar, por que você fugiu de mim?
A pergunta foi respondida com uma tremenda “bolsada” no rosto que fez Ricardo ver estrelas. “Que bolsa pesada!” Quando voltou a si, Ricardo só pode ver Josilene, com a bolsa arrebentada entrar rapidamente em um Gol branco que arrancou cantando os pneus. Ainda deu para reparar que no porta-malas do carro havia um adesivo “EROS – Rent a Car”. A Loja da Gorda! Ele já havia lido em algum lugar. Ao pensar em leitura, Ricardo reparou que ao lhe atingir com a bolsa, a moça havia deixado cair na calçada algo que parecia ser um estojo de maquiagem e um livro. Já estava se abaixando para apanhá-los quando um outro par de mãos o fez antes dele.
_ O senhor?
_ Salomão Carlos, médico anestesista. Disse o homem calvo, apontando para o crachá pendurado no bolso do jaleco branco. Nos conhecemos agora há pouco. Como vai a senhora sus mãe?
_ Bem, creio eu. Ricardo hesitou um pouco. _ Obrigado... por perguntar.
_ Que satisfação em saber tão boa notícia! Bela leitura! E creio que isto deva pertencer a sua senhora. Disse o médico ao lhe entregar o livro e o estojo. _ Passar bem.
Era simpático aquele senhor! Tão sorridente e atencioso.
Morrendo de curiosidade em saber mais sobre a tal Josilene, Ricardo guardou o estojo no bolso, apanhou o livro e foi procurar a Vanderly.
Porém, sua busca foi em vão, ela desaparecera. Não estava na enfermaria, na sala das enfermeiras, na recepção nem no necrotério. Simplesmente evaporara. Cansado de tanta correria, resolveu retornar à sala de espera onde sua irmã Rosana o aguardava.
_ Ricardo, onde você se meteu?
_ Fui tomar um pouco de ar fresco lá fora.
_ Ta bom. Olha, o médico já vem vindo. A Cláudia foi levar as crianças no colégio, disse para você ligar se quiser que ela volte para cá.
“Até parece!” Pensou. E voltou ao banco do corredor, passando a folhear o livro. Era o volume dois de “The Game TheoryandEconomicModels”, A teoria dos jogos e modelos econômicos, de H. P. Nightmare, PhD. “Que leitura mais complicada para uma enfermeira”, surpreendeu-se. Mais surpreso ainda Ricardo ficou quando viu o carimbo que estava na primeira página e na lateral do livro. Aquele livro veio da biblioteca perto do banco! A mesma biblioteca onde o finado Jéferson trabalhava! O mesmo Jéferson para o qual ele deveria ter passado o recado da Cybele, ou Jô. A mesma Cybele ou Jô que acabara de fugir dele como o diabo foge da cruz ali no hospital e que carregava este livro na bolsa.
Todas estas coincidências iam e voltavam sem para dentro da mente de Ricardo, mesmo enquanto ele conversava com o médico de sua mãe, Dr. Santana. Ele só se lembrava de ter ouvido as palavras “Dona Lúcia está bem”, “ainda não sabemos a causa” e “ela terá alta amanhã”. Era o mais importante.
_ Ricardo!
_ Oi Cristina! Você veio!
_ Desculpe, só consegui chegar agora. Como ela está?
_ Bem, graças a Deus! Foi só um susto. O médico disse que já podemos vê-la. Você nos acompanha?
Dona Lúcia já conhecia a chefe de Ricardo a algum tempo, de festas e confraternizações passadas. As duas se davam muito bem. Ficaram cerca de quarenta minutos no quarto. Ela já estava bem alegre, corada e não se lembrava absolutamente de nada que acontecera.
Por volta de uma tarde, Cristina sinalizou que iria retornar ao banco e Ricardo lhe pediu uma carona.
_ Que é isso, Ricardo. Não precisa.
_ É só para apanhar uns documentos do plano de saúde, Cris.
Então eles saíram. Ficou combinado que Rosana ficaria de companhia para a mãe até a volta de Ricardo, quando então ela poderia ir até em casa tomar um banho e retornar para passar a noite.
Na verdade, os documentos do plano estavam com ele. O objetivo era ir até a biblioteca e checar quem havia emprestado aquele livro.
 
 
*
 
Depois de uma rápida passada no banco, onde fez uma hora e recebeu apoio dos colegas, seguiu a pé até a biblioteca.
O local já havia sido liberado pela polícia. Ricardo tomou assento em um dos terminais de consulta de livros e periódicos. Como o sistema era integrado, dali era possível acessar a tela de empréstimo de livros. Bastava ter a senha correta, o que para ele não era problema. Costumava invadir sistemas assim quando era estagiário, só por diversão. E bibliotecas não eram referências em termos de segurança. O Jéferson que o diga.
“Vejamos... The Game Theory... volume dois”. Foi um resultado surpreendente. Ricardo conhecia quase todo mundo que havia emprestado aquele livro. O último empréstimo havia sido a seis meses, para Cristina, sua chefe. Uma semana antes havia estado com o Chico, seu colega e, o mais impressionante... Há um ano atrás estava com a Suzi, faxineira do prédio. “Esse livro deve ser ótimo! E muito popular lá no banco”.
_ E aí, Rick, meu chapa, tudo bem? Você por aqui?
_ Oi Chico. É... Vim procurar um material pra ajudar a Laura num trabalho da escola.
_ Ah, The Game Theory! Bomlivro! Já leu?
_ Ainda não. Sobre o que é?
_ Ele faz relação entre os fenômenos econômicos, como o movimento das bolsas e a cotação do dólar aos jogos como futebol, pôquer, gamão e até xadrez, mostrando que eles podem ser previstos matematicamente. Explicou Francisco enquanto folheava o livro. _ Mas algumas páginas foram arrancadas deste aqui.
_ Ah é?
_ É, olha! As páginas 12 e 21.
_ É mesmo... 12 e 21, que coincidência, é o final do número do meu celular e do telefone da minha casa. Disse Ricardo.
_ É um palíndromo. Arrematou Francisco.
_ Como é que é?
_ É um palíndromo. Um número que é lido da mesma forma no sentido normal e de traz pra frente. 1221, de traz pra frente dá a mesma coisa.
_ Interessante...
_ Bom, de qualquer forma, é melhor você começar pelo volume um. Até mais.
_ Até...
Ricardo pesquisou no computador para ver se o primeiro volume estava emprestado. Como não estava anotou o número da prateleira e foi procurá-lo, mas o livro não estava lá. Procurou em volta e nada. “Talvez a polícia tenha recolhido”, pensou, “ou então está misturado por aí”.
 
 
 
 
Ricardo deixou a biblioteca por volta da três horas da tarde e seguiu de táxi para o hospital, onde iria render Rosana junto ao leito de sua mãe.
Antes, porém, resolveu ir até à lanchonete em frente ao hospital. Seu estômago lembrava que não comera nada o dia todo.
Já confortavelmente instalado em uma das espaçosas mesas do “Gordão Burger”, Ricardo começou a relembrar os últimos acontecimentos.
Primeiro, a ligação da misteriosa Jô. Depois, o assassinato do bibliotecário e o reaparecimento do celular. Em seguida o encontro com a moça no hospital e a fuga. Ela conhecia a Vanderly, que depois também sumiu. E a Gorda? Teria alguma coisa a ver caso? Será que foi por meio dela que se conheceram. E o livro? Como um livro da biblioteca do banco foi parar nas mãos da Jô? Coincidência?
Passou a se lembrar da conversa entre eles ao telefone. “Eu preciso que você procure o Jéferson na biblioteca e diga a ele que estávamos errados”. Errados a respeito do quê? “E diga que o nome é Cybele, com ‘y’”. Será que se referia a uma terceira pessoa?
Nesta hora, sentiu o calafrio percorrer sua espinha e percebeu que estava com medo. Com certeza lidava com pessoas perigosas. Um rapaz já havia sido morto e ele se envolvera ainda mais ao perseguir Josilene pelos corredores do hospital. E agora tinha em seu poder um livro que caíra da bolsa dela.
Suas pernas ficaram bambas, começou a suar frio. Pensava em suas filhas, em sua mãe no hospital, em sua irmã e até em Cláudia. Elas poderiam correr perigo.
Mas, ao mesmo tempo, havia uma outra sensação mais estranha. Pela primeira vez nos últimos dias a depressão não tomou conta do seu corpo e da sua mente. Ricardo se sentia revigorado, com mais energia.
Mesmo assim, decidiu que era melhor se afastar de toda esta confusão. Logo de manhã. Iria devolver o livro à biblioteca do banco.
Só uma última coisa precisava ser feita antes de dar o caso por encerrado: conversar com a Vanderly. Ricardo decidiu que iria atrás dela assim que Rosana retornasse ao hospital para passar a noite com a mãe.
Com esta determinação, pagou a conta no “Gordão” e já ia saindo quando ouviu um chamado cada vez mais familiar:
_ Senhor Ricardo! Fazendo uma bela refeição, hein?
_ Hã?

_ Salomão Carlos, medico anestesista! Nos conhecemos hoje lembra?

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publicado às 16:46

Livro Coletivo - Cap. 02

por ornitorrincoquantico, em 06.08.09

Autora: Nadja Prado


Ricardo por alguns minutos ficou perplexo pelo que acabara de ouvir.Passou a mão sobre a testa e percebeu que estava suando frio.

 

Aquela notícia tinha acertado bem no fundo do seu estômago, e em questão de segundos, tudo passou pela sua mente - o telefonema da noite anterior, a voz de uma mulher desesperada, e o próprio Jeferson.Um bom rapaz, franzino, moreno,voz de locutor.Tinha pouco mais de vinte e dois anos... Trabalhava, há dois anos, na biblioteca.Durante esse tempo ganhou a amizade de muitos colegas devido a sua simplicidade e seu esforço em cuidar de sua família. Era ele que levava o pão para a casa. Tinha mais duas irmãs menores e uma mãe doente.Era órfão de pai e talvez por isso buscava a atenção de pessoas mais velhas.Seu sonho era ser um ator famoso! Era um dos melhores da Escola de Teatro.

 

Ricardo estava inconsolável. Não tinha muito papo com o garoto, mas o admirava e sempre que podia citava-o para seus amigos. Ninguém tinha ânimo para mais nada. As mulheres cochichavam entre si para tentar decifrar aquela morte estúpida e violenta. Os homens um tanto apáticos com o acontecimento, tentavam elucidar o caso concluindo o seguinte:

 

- Eu falei...esse garoto era esquisito! Vai saber o que ele aprontou! – exclamava Fernando, um dos funcionários do banco.

- Não é bem assim...a violência tá rolando por aí. Hoje foi ele e amanhã? – perguntou Ricardo, um tanto apreensivo.

- Amanhã? Quer saber! Dane-se! Tô cheio de problemas e ainda por cima sobrou pra eu cuidar da sogra doente! A polícia é que resolva, são pagos pra isso! –disse em tom sarcástico a Ricardo e dirigiu-se para a sua mesa.

 

Fernando era assim mesmo.Embora, fosse um homem charmoso, elegante e bom de conversa, era extremamente frio, talvez, por ser mais um dos muitos narcisistas que habitam em nosso planeta.

 

Fora um dia melancólico.Ricardo pouco falou e o pouco que conseguia ouvir, nada entendia... Sua mente vagava e ele desesperadamente tentava encaixar aquele quebra-cabeça! A ligação, a voz desconhecida, o pedido, o uso de seu celular... Sua gaveta  estava trancada quando ele deixou o trabalho um dia antes do crime.Como puderam usá-lo? Somente a empregada, Susi, tinha as cópias.

De repente volta ao mundo real. É despertado por um de seus colegas, o Alexandre:

 

- O que você acha de tomarmos um chopinho? O dia aqui foi terrível! Eu não esperava por esta!

- Obrigado cara! Mas não tô com cabeça pra isso.Apesar de não ter tido muito contato com o Jeferson, sabia que ele era gente fina! E a família dele? Alguém foi até a casa oferecer ajuda? Sei lá...a família deve estar arrasada!

-O pessoal da biblioteca e do teatro certamente já devem ter feito isso.O rapaz morava longe, num lugar de dar medo até em bandido! Puta merda! Acho que acordava na madrugada pra chegar aqui.Coitado!

- Alexandre, tenho que ir pra casa. A minha mãe está chegando e eu preciso ajeitar algumas coisas por lá. Sabe como é? Ela e a Claudia não se combinam! As duas juntas serão uma explosão maior do que a bomba de Hiroshima!

- Que cruz você carrega, hein? Tô fora desse angu! Vou convidar alguém que esteja com menos pepinos do que você!

- Vá sim, Alexandre! Eu estou péssimo e não serei uma boa companhia nem ao menos pra uma barata...

 

A fisionomia de Ricardo mostrava claramente os seus sentimentos naquele momento.Ajeitando seu paletó, dirigiu-se até a sua mesa, ajeitou papéis, abriu a sua gaveta e apanhou o celular. Por algum momento sentiu necessidade de falar com alguém sobre a ligação que recebeu, mas titubeia e volta atrás.O silêncio o pouparia de perguntas, interrogatórios policiais e a fúria de sua esposa, a inconseqüente Claudia. Não valia a pena. Sua vida já estava uma droga!

    

Quando chegou em casa, percebeu que no trajeto inteiro estivera desligado do mundo.

Não sabe como não cometeu um acidente.Tudo o intrigava. Mal entrou em sua casa deparou com uma cena um tanto assustadora.Outro crime? Não! A casa estava completamente virada de pernas para o ar!  Os pratos sujos da noite anterior ainda estavam sobre a mesa. Pipocas, papéis, pedaços de bolachas espalhados pelo chão, sem contar, o nojo que estava a cozinha. Nada havia sido arrumado! Parecia até que um exército havia passado por ali e destruído tudo! Laura, a filha de Ricardo, estava como sempre computador acompanhada com uma pacote de doces..

- Filha!  Que aconteceu por aqui? - perguntou Ricardo.

- Paaaaiiiiiiii!!! - gritou ela alegremente.

- Laurinha!  Desse jeito você vai me lambuzar de doce...mas não tem importância! Um abraço desse vale mais do que todos os paletós do mundo!  Te amo, viu?!

- Pai, a mamãe ficou deitada o dia inteiro...

- Por quê?  Ela tá doente?

- Acho que sim! Ela falou pra mim que tá com muita dor na cabeça.A Isa tá com ela no quarto.Eu cansei de ficar lá!

- Tá bom, Laurinha!  Agora deixa o papai tirar essa roupa, tomar um banho e tentar ver se tem alguma coisa nessa cozinha pra comer, eu não sou de ferro...

 

Mas para viver naquela casa precisa ser de ferro. As coisas não fluíam bem.Nada dava certo. O clima estava pesado.Não havia paz. Não havia amor e muito menos diálogo. As tentativas eram em vão. Quando ambos se falavam, tudo partia para o lado pessoal, diálogos recheados de rancor, ódio e palavrões. Certa vez, em uma das muitas discussões, Claudia, atirou a tv da sala no chão! Acabou cortando levemente um de seus pés e assustando as meninas.Depois de alguns dias, Ricardo, acabou comprando outro aparelho.Um banho morno era a única coisa relaxante a se fazer naquele instante.

 

Dirigindo-se ao banheiro, Ricardo deu de cara com Claudia, que saía do seu quarto. Deus! Ela estava horrível!  Já não era aquela morena de lábios carnudos que ele havia conhecido há tempos atrás. Ainda tinha um belo corpo, mas a beleza anterior já tinha se apagado. Seus olhos verdes continuavam belos, embora, não representassem mais nada para Ricardo.Ajeitando os seus cabelos, Claudia, perguntou-lhe:

 

- Se eu estivesse morta no quarto, você não daria a mínima, não é?

- Não entendi... – disse ele perturbado.

- Já faz um tempão que você chegou e nem ao menos foi me ver. Escutei muito bem o que a Laurinha disse a meu respeito! O dia inteiro minha cabeça parecia que ia explodir de tanta dor!

- Você já teve essas dores antes.Tomou algum analgésico?

- O que importa? Se tomei, se não tomei ou se morri! A empregada não veio pra limpar tudo isso aqui.Ligou dizendo que seu filho está doente...Ah! Amanhã preciso fazer umas comprinhas.Algo básico.Um tapete maior, novas cortinas,quero deixar a casa impecável pra chata de sua mãe não ter o que reclamar! 

- Claudia, já te falei, agora não posso gastar mais! Estamos até o pescoço com dívidas! Você detona todos os cartões de crédito! Compra o que não deve, sem falar no seu troca-troca de móveis... Ponha a mão na sua consciência! Desse jeito,acho melhor você procurar um emprego para satisfazer o seu luxo.Quem sabe sua vida melhora e me deixa em paz-grita Ricardo.

 

Inesperadamente, Claudia esbofeteia Ricardo.

 

Ele sem pensar revida imediatamente. Ela fica paralisada. Seus olhos fixam-se nos olhos de Ricardo. É um olhar gélido que penetra no fundo da alma. Ricardo entra no banheiro e desata a chorar silemciosamente.

 

 

Agora, tudo voltava a sua mente! A última vez que havia chorado foi no enterro de seu pai.Era um bom homem.Companheiro, calmo e extremamente amoroso com a família.Já faziam muitos anos que ele havia morrido.Mas seu exemplo de vida continuava gravado na mente dele.Ele tinha apenas uma irmã mais nova, Rosana.

Ricardo nunca havia agredido fisicamente sua esposa. Apesar dela, por várias vezes, ofendê-lo profundamente, Ricardo sempre se mantivera equilibrado. Porém, os últimos fatos haviam perturbado sua mente.Ele já não sabia o que dizer ou o que fazer.Havia perdido o controle da situação há muito tempo.

 

Teve vontade de morrer. Seria melhor para todos.

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publicado às 21:33

Conto: Queda de Bia Blasé e ascenção de Bia Boazuda

por ornitorrincoquantico, em 08.07.09

 

Bia sempre foi boazinha. Era o que todos diziam dela. E ela era mesmo boazinha. Mas esse era seu problema.

 

Era fácil confiar nela, ela era confiável. Era fácil se afeiçoar a ela, ela era carinhosa. Era fácil ter ela em uma mesa de bar, ela era sociável. Enfim, era uma boa pessoa. Mas... tadinha...

 

O problema era o tal de "tadinha" - Ela é boazinha, né? Mas... tadinha... - era o que praticamente todos diziam dela. Não era culpa dela e nem dos amigos, havia uma tristeza no ar que não permitia que Bia se soltasse completamente. Dentro dela, em um cantinho bem escondidinho de seu cérebro, havia uma Bia completamente diferente. Na verdade igual, mas diferente. Tinha todas as suas qualidades, porém não havia tristeza em seu olhar e era livre como uma ave.

 

Bia queria libertar essa outra Bia. Ela a conhecia e era muito feliz com ela no passado. Mas há muito elas foram separadas. A Bia liberta foi presa e a Bia presa ficou solta. Ela lutou durante muito tempo pela liberdade de seu outro eu, mas sempre foi em vão. A principal barreira é que ela não se suportava, se culpava e se feria. Foram muitas noites de choro no chão do quarto, no chão da cozinha, no chão do banheiro... e em todos os chãos em que lhe foi possível cair e chorar.

 

Ela queria sorrir e até conseguia. Mas o dia seguinte era triste porque ela não conseguia evitar a culpa que surgia. Ela não entendia que culpa era essa mas se rendia a ela por não ter forças para lutar. Sua carne perdia a alma aos poucos e ela não conseguia impedir isso.

 

Queria amar, mas não conseguia. Esperava demais dos outros. Esperava. Esperava. Esperava. E nada. Aí ela sofria. Se culpava. Se feria. Nenhum telefonema. Nenhum recado. Nenhum grito. Nenhum oi. Ela desabava. Seu coração erodia aos poucos.

 

Mas sempre acreditou que isso passaria. Queria acreditar que a mudança era possível. Só não sabia como fazer. Aí pensou uma coisa, tentou e deu errado. Pensou outra coisa, tentou e deu errado de novo. E de novo... E de novo... Aí voltou a espera, voltou a dor, voltaram as lágrimas.

 

 

Até que um dia ela se proibiu de chorar, reclamar e de esperar. Ou melhor, ela continuaria a esperar, mas não planejaria mais nada, viveria, aos trancos e barrancos, mas viveria. Batendo a cara mesmo e deixando as coisas acontecerem. Encheu o peito e gritou: "Que se foda!!!". Ela estava disposta a aprender a viver, não sabia como, mas algo em si dizia que finalmente ela havia encontrado um caminho mais correto.

 

A solidão continuou. O "coitadinha" também. Mas ela dizia: "Um dia muda..." E foi trabalhar, foi conversar, foi estudar, foi na padaria, foi no buteco, foi aonde podia. E esqueceu que estava sozinha, esqueceu que chorava e esqueceu que não se amava e não se perdoava.

 

Um dia, na volta de um desses lugares, ela encontrou um diário jogado na rua. Pegou e leu. Não tinha o nome e endereço do dono, apenas um apelido: Angel. Na noite em que encontrou o diário ela não dormiu. Mergulhou no mundo daquele Angel. E viu uma vida, como a dela, cheia de dores e alegrias. Bia chorou e riu e percebeu que sempre fora muito egoísta. Achava que era a única que sofria no mundo e que o mundo não lhe queria. Mas Angel lhe perguntou: "E você, se quer?" - "Como assim?" - ela respondeu.

 

Respondeu e correu ao banheiro. Se olhou no espelho e se viu, como nunca antes havia se visto. Ela tinha medo de si, mas conseguiu coragem de se encarar frente a frente. E viu a outra Bia. Angel havia lhe libertado. Deu medo, mas ela respirou e estendeu a mão. "Não tenho muito contato com você, mas estou disposta a mudar isso..."

 

"Tem certeza?"

 

 

"Sim."

 

Bia então acordou. E não estava mais em seu quarto, não era mais aquele dia e não era mais ela. Ou melhor, corrigindo tudo, ela estava no seu quarto, era aquele dia ainda e era ela mesma. De verdade. De forma plena e sincera.

 

Aí ela se tornou um furacão e saiu por aí derrubando casas, carregando vacas e levantando poeira. Já não era mais "Coitadinha" nem "Boazinha". Era a Bia verdadeira e sincera que sempre deveria ter sido.

 

Até que chegou o dia de hoje. Ela está nua se olhando em um espelho. E como se sente bela. Suas banhas não lhe incomodam mais, suas estrias se tornaram desenhos de flores belas e cheirosas. Ela se entregou a si e se beijou. Ligou uma música e começou a dançar, começou a sentir o mundo, o ar e a vida. Está plena e livre.

 

A campainha não toca, o telefone não toca, ninguém a grita... mas é diferente. Porque não importa. Ela não precisa esperar nada, a única coisa que precisa já havia conquistado e está em êxtase experimentando um prazer que nunca antes havia sentido.

 

E caiu no chão novamente, no chão da sala, da cozinha, do banheiro... mas não era uma queda, era sua ascenção. E não havia lágrimas. Havia risadas. E ela só tinha uma certeza, essa risada não acabaria no dia seguinte. Não, nunca mais.

 

Era a Bia, apenas. Não mais "Boazinha" mas "boazuda". Não carece mais de ter vergonha, não carece mais de esperar. Sua hora chegou. E não ficaria mais parada, se entregaria ao movimento, ao doce movimento.

 

Quem gostar pode entrar em sua órbita e cirandar com ela. Ela está aberta ao universo. E quem não gostar é só desviar. Só não peçam para Bia desviar sua tragetória para você passar.

 

Ninguém interrompe o movimento de alguém livre.

 

 

Crédito das fotos:

Site Olhares

Foto 1 - Almost Blue IX - Ana Tomás

Foto 2 - Toque - Verme

Foto 3 - Espelho meu... espelho meu... - Nobre

Foto 4- Nice & Smooth - Hugo Macedo

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publicado às 23:19

Arcimboldo (Parte 2 de 2 - Análise de Imagens)

por ornitorrincoquantico, em 28.06.09

E a obra de Arcimboldo para análise é "O bibliotecário" (1566):

 

 

Arcimboldo realiza um trabalho semelhante ao quadro de Rodolfo (confira a parte 1) e cria uma ilusão utilizando dessa vez elementos que são encontrados em uma biblioteca: livros, marcadores, espanador de pó, óculos e cortina, formando a imagem de um homem, um bibliotecário da época.

 

Assim, Arcimboldo utiliza elementos que ele acredita representar a essência do retratado. No caso de Rodolfo, os alimentos representam a ilusão do poder. E em "O bibliotecário"?

 

A representação do bibliotecário é formada por livros organizados e bem cuidados (eles não são sujos e não possuem estragos). Uma cortina encobre parte do que seria o ombro, representando uma capa e também mostrando que os livros, com o bibliotecário, estão protegidos e bem conservados.

 

Mas assim como no quadro de Rodolfo, não há nada que nos garanta que exista segurança. Um esbarrão e toda a pilha de livros pode desabar. Assim é o homem, vive sua vida na ilusão de uma segurança, mas que é efêmera. Hoje está limpo, mas amanhã poderá estar empoeirado.

 

Há também um livro aberto representando um chapéu ou peruca. A mente do bibliotecário estaria assim, aberta ao conhecimento, pronta para ser consultada. A forma como o bibliotecário é representado mostra também que a profissão era respeitada e bem vista, afinal só por ser tema de uma pintura nessa época já era um sinônimo de status.

 

Essas ilusões também estão presentes em diversas outras obras do artista, olhe só:

 

The Four Seasons in One Head

 

O ar

 

A terra

 

O inverno

 

Muitas pessoas ao tomarem contato à primeira vez com o trabalho de Arcimboldo o classificam erroneamente como surrealista. Na verdade, seu trabalho hoje está inserido na escola artística do Maneirismo.

 

De acordo com o site Histórianet, "o maneirismo tem características variadas, difícil de reuni-las e um único conceito.
O termo Maneirismo foi utilizado por Giorgio Vasari para se referir a "maneira" de cada artista trabalhar. Uma evidente tendência para a estilização exagerada e um capricho nos detalhes começam a ser sua marca, extrapolando assim as rígidas linhas dos cânones clássicos.
Muitos críticos consideram que o maneirismo representa a oposição ao classicismo e ao mesmo tempo, manteve-se como tendência artística até o desenvolvimento do Barroco, que marcaria a nova visão artística da Igreja Católica, após o movimento de contra reforma Alguns historiadores o consideram uma transição entre o renascimento e o barroco, enquanto outros preferem vê-lo como um estilo propriamente dito.
Os artistas passam a criar uma arte caracterizada pela deformação das figuras e pela criação de figuras abstratas, onde não havia relação direta entre o tamanho da figura e sua importância na obra (...) Rostos melancólicos e misteriosos surgem entre as vestes, de um drapeado minucioso e cores brilhantes. A luz se detém sobre objetos e figuras, produzindo sombras inadmissíveis. Os verdadeiros protagonistas do quadro já não se posicionam no centro da perspectiva, mas em algum ponto da arquitetura, onde o olho atento deve, não sem certa dificuldade, encontrá-lo. No entanto, a integração do conjunto é perfeita.

E é assim que, em sua última fase, a pintura maneirista, que começou como a expressão de uma crise artística e religiosa, chega a seu verdadeiro apogeu, pelas mãos dos grandes gênios da pintura veneziana do século XVI. A obra de El Greco merece destaque, já que, partindo de certos princípios maneiristas, ele acaba desenvolvendo um dos caminhos mais pessoais e únicos, que o transformam num curioso precursor da arte moderna"

 

Os principais pintores maneiristas foram: Domenico Beccafumi, Francesco Salviati, Giorgio Vasari, Giuseppe Arcimboldo, Marten de Vos, Cornelis van Haarlem e El Greco.

 

Futuramente, ao analisarmos algum pintor barroco, perceberemos algumas semelhanças entre o estilo de Arcimboldo e o barroco.

 

Espero que tenham gostado desse pintor. Existem diversas imagens dele na internet, procurem e tentem conhecer um pouco mais desse artista que passou muitos anos esquecido pela história da arte e só muito recentemente foi "redescoberto".

 

Mês que vem tem mais. Até lá.

 

Para ler os artigos já publicados:

 

Arcimboldo (Parte 1 de 2 - Análise de Imagens)

Andy Warhol - Parte 1

Andy Warhol - Parte 2

Andy Warhol - Parte 3
Vamos aprender a ler a Arte?

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publicado às 01:29

Arcimboldo (Parte 1 de 2 - Análise de Imagens)

por ornitorrincoquantico, em 21.06.09

O artista selecionado para análise esse mês é Arcimboldo.

 

 

Arcimboldo foi um pintor italiano, nascido em Milão em 1527 e falecido em 1593. De acordo com o site Casthalia, "Arcimboldo trabalhou inicialmente com seu pai, no vitral da catedral de Milão. A partir de 1562 morou em Praga, então capital do reino da Boêmia e hoje da República Tcheca, onde consolidou sua carreira como artista. Serviu na corte de Fernando I e de seus sucessores, Maximiliano II e seu filho Rodolfo II, grandes mecenas. Arcimboldo foi admirado como artista pelos três monarcas, tornou-se pintor da corte e chegou a ser nomeado Conde Palatino. Praga transformou-se no século XVI, principalmente por causa de Rodolfo II, em um dos maiores centros culturais da Europa, de intensa e diversa atividade cultural e científica. Seus governantes eram vistos, além de seus domínios, como simpatizantes do exótico. Nesse contexto, as singularidades da arte de Arcimboldo encontraram solo fértil para florescer".

 

O quadro selecionado para primeira análise é "Rodolfo II pintado como Vertumno, deus romano das estações" de 1590. Vamos ler com calma, procurando perceber cada detalhe da obra. Quanto mais tempo você se dedicar, mais coisas irá perceber.

 

 

Então, o que achou? Já conhecia?

 

A primeira coisa que percebemos nesse quadro é que existe um jogo entre duas possibilidades de sentidos. Em um primeiro momento percebemos que é um retrato de alguém, o tal Rodolfo II. Mas logo vemos que não é uma representação convencional, a imagem de Rodolfo II se forma a partir de um amontoado de legumes, frutas, verduras e flores.

 

A primeira coisa a saber é tentar descobrir quem foi Rodolfo II.

 

 

Rodolfo II foi imperador do Sacro Império Romano Germânico. De acordo com a Wikipedia, ele nasceu em Viena em 1552 e faleceu em Praga, no ano de 1612. "Adotou o calendário gregoriano em 1583. Não conseguiu manter a coesão de seus Estados. Instalou a capital em Praga, atraindo a simpatia dos checos e a hostilidade dos alemães. Haverá revoltas na Áustria 1595-7 e dos húngaros. A partir de 1597 sua saúde declinou e, trancando-se no castelo chamado Hradcany, apaixonou-se pelas ciências e belas artes e se tornou protetor de Tycho Brahé, Kepler, um grande mecenas de seu tempo. Seus irmãos se apoderam do poder. O Arquiduque Matias, vencedor dos turcos, tratou diretamente com eles e obrigou Rodolfo a lhe ceder a Áustria, a Morávia e a Hungria em 1608. O Imperador conseguiu conservar a Boêmia e a Silésia, dando aos súditos protestantes uma carta (lettre de majesté) em 9 de julho de 1609, que lhes concedia, com certas restrições, liberdade de consciência e de culto [...] Rodolfo II foi um dos mais excêntrico monarcas europeus de todos os tempos. Rodolfo colecionava anões e possuia um regimento de gigantes em seu exército. Ele era rodeado por astrólogos e fascinado por jogos, códigos e música. Rodolfo fazia parte dos nobres de seu período orientados pelas ciências ocultas. Patrono da alquimia, financiou a impressão de literatura alquimista".

 

O mais importante a saber sobre Rodolfo II é que ele foi um grande mecenas de Arcimboldo, bem como Maximiliano II, anterior a Rodolfo. Eles patrocinavam o trabalho de Arcimboldo, porque ambos possuiam gostos e atividades em comum, como o ocultismo. Havia na época em que eles viveram um lugar em Praga chamado Câmara de Arte e Prodígios, que era um núcleo do museu de Praga. De acordo com o site Casthalia: "A Câmara reunia os mais diversos objetos estranhos, registros de pessoas com anomalias físicas (desde anões até gigantes), animais, frutas, legumes de diversas espécies, provindos de todos os continentes. Ali Arcimboldo teve condições de fazer estudos para suas obras, observar o pormenor de cada elemento representado, representando-os em seus mais ricos e finos detalhes".

 

E foi trabalhando nessa câmara e com o apoio dos mecenas que Arcimboldo encontrou a matéria-prima principal para os seus trabalhos. Ele começou a pintar quadros que criavam verdadeiras ilusões óticas, formando imagens a partir da união de outras.

 

Ilusão. Uma das principais oposições que encontramos em seus quadros é essa, a ilusão vs. a realidade.

 

Voltemos ao quadro de Rodolfo II para entender isso. Rodolfo, como vimos, foi um homem muito importante e poderoso do seu tempo. Todos os quadros que representavam grandes homens naquela época e durante muitos anos depois, sempre procuravam valorizar as figuras representadas, mostrando poder, luxo e imponência. E era isso que se esperava de um pintor quando ele recebia uma encomenda de alguém importante. Afinal, naquela época, um quadro era muito caro para ser realizado, era preciso uma fortuna muito grande para alguém bancar o preço das tintas. Se os retratos não saíssem ao gosto dos retratados o pintor correria risco de morte.

 

E como Arcimboldo retratou Rodolfo? Como um amontoado de frutas e verduras, algo não muito convencional, mas que foi muito bem recebido pelo retratado, porque ele admirava o trabalho de Arcimboldo na câmara e era um entusiasta de tudo o que não era convencional, como vocês puderam perceber nas citações acima.

 

Elencar todos os elementos que Arcimboldo utilizou na composição deixaria esse artigo enorme, por isso deixo essa missão a você, leitor. O importante é saber que todas as frutas, verduras e legumes utilizados na composição são frescos, possuem uma boa aparência e parecem suculentos. Não há nada que pareça estragado ou podre.

 

Assim, o homem representado é tão vivo e de boa aparência quanto os alimentos. E todos nós precisamos nos alimentar, é condição vital para a vida. Isso mostra que o poder do imperador também é importante para manter a vida de seu povo. Seu povo precisa dele bem como eles precisam de alimentos frescos e saudáveis para se alimentar. E ele não seria um mal imperador, porque ele teria qualidade e saúde, assim como os alimentos representados.

 

Porém, tudo o que é saudável e de boa aparência um dia sempre estraga e apodrece. No quadro tanto os alimentos quanto o imperador aparentam uma boa imagem, mas no futuro definitivamente isso irá acabar. Os legumes e verduras irão estragar, as frutas amargarão e as flores e folhas secarão. Bem como o poder de Rodolfo um dia também acabará, sem falar na morte, que é sempre uma certeza na vida do homem.

 

Se olharmos melhor ao quadro novamente percebemos que existe ainda uma outra fragilidade, todos os alimentos estão amontoados, não há nada que nos garanta que eles estejam firmes e fixos. Ou seja, qualquer esbarrão, chute ou vento pode desabar com tudo. O poder pode aparentar luxo e força, mas na verdade é fraco e pode ser vencido por outras forças. A força vs fragilidade é, assim, uma outra oposição importante do quadro.

 

Espero que tenham gostado dessa análise. Ainda haverá uma segunda parte, onde analisaremos um outro quadro de Arcimboldo e vamos tentar entender em que escola artística se encontra o trabalho dele.

 

Até lá! E continue a ler imagens, é sempre bom para a nossa formação e vida!!!

 

PS: Quem é Vertumno, o deus do título do quadro? Descobri recentemente:

 

"Divindade romana, de origem etrusca, que presidia a fecundidade da terra, a germinação das plantas, a floração e o amadurecimento dos frutos. Apaixonou-se pela ninfa Pomona. Esta, porém, dedicava-se exclusivamente ao cuidado dos pomares e jardins, recusando a corte de seus numerosos pretendentes. Para conquistá-la, Vertumno apresentou-se a ela sob vários disfarces. Assim, transformou-se sucessivamente em lavrador, ceifeiro e vinhateiro, porém não conseguiu realizar seu intento. Por fim, metamorfoseou-se em velha e captou a confiança da amada. Falou-lhe, então, do afeto que lhe dedicava Vertumno. Ao perceber a comoção da ninfa, mostrou-se a ela sob a forma de um belo jovem, conquistando-a finalmente. As sucessivas transformações de Vertumno representam a mudança ocorrida na natureza ao longo do ano: primavera, verão, outono e inverno. O deus é representado sob os traços de um belo jovem coroado de ervas, portando na mão esquerda algumas frutas e na direita uma cornucópia".

Fonte: "Dicionário de Mitologia Greco-Romana", Abril Cultural, São Paulo, 1973, p. 186, s/ autor. Disponível em: <http://www.brasilcult.pro.br/cursos/sobrev02.htm>. Acesso 27 jun 2009.

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publicado às 20:25

Chocolate Surpresa

por ornitorrincoquantico, em 07.05.09


 

Quando era pequeno, na época em que minha única preocupação na vida era saber a letra da nova música da Xuxa, eu vivia cercado por livros da minha irmã. Olhava aquele monte de livro e ficava admirado com eles. Queria entender o que aqueles risquinhos pretos queriam dizer e por que minha irmã se demorava tanto com eles.

 

Atormentava minha irmã para que ela me desse algum. De vez em quando ela me dava um ou outro já velho. E eu mergulhava neles no que eu conseguia entender: as imagens. A maioria dos livros que ela me dava eram didáticos e com diversas ilustrações. Então sentava no chão de terra batido do terreiro lá de casa, à sombra da goiabeira, e viajava no mundo daquelas figuras. Algumas recortava e colava em algum outro papel, mas muitas eu não tinha coragem, parecia ser um certo desrespeito com o livro.

 

De tanto olhar para aqueles livros não é que aprendi a ler? A primeira coisa que li na vida foi o logotipo da geladeira lá de casa: General Eletric. Minha mãe assustou-se quando viu aquela criança que ainda não ia à escola repetindo essa palavra.

 

 

"Onde você viu isso?".

"Ali, mamãe..."

"Mas não é possível. Você deve ter visto na TV".

"Não foi não, foi ali".

"Então me mostra".

 

Ela me pegou no colo, me levou até a geladeira e eu mostrei à ela. Ela chorou e começou a me mostrar pra todo mundo. Chamava os vizinhos todos os dias para que eu lesse a geladeira para eles. Depois, quando começou a exigir mais, pegando outras palavras, eu simplesmente desaprendi a ler. Não conseguia ler mais nada. Nem General Eletric.

 

Só voltei a ler no pré-primário. Fui o sexto da turma a ler. Foi num fim de mês de maio.

 

Quando voltei a ler, revi todos aqueles livros da minha irmã. Ela de início achou maravilhoso.  Quando li o Pequeno Príncipe ela achou inacreditável. Quando li O alquimista ela achou desaconselhável. Quando peguei Cem anos de solidão, ela tomou o livro de minha mão, achou absurdo. Não era para minha cabecinha de 7 anos. Ela então passou a me emprestar livros infantis. Eu gostava. Ler era o maior barato para mim, bem como desenhar e pintar.

 

Mas enfim, estou fazendo um rodeio enorme e ainda não entrei no que eu queria contar nessa crônica. Vamos lá.

 

 

Desses livros que eu tinha que eram da minha irmã, havia um que era de português da quinta série e continha vários textos para leitura e interpretação, todos ricamente ilustrados. Um desses textos tinha uma ilustração que adorava. Era um menino, com carinha de pobre, olhando, por trás de um grande portão de ferro, um outro menino, com carinha de rico, que brincava sozinho em sua casa. A história falava de como o menino pobre observava o menino rico e queria ser seu amigo, mas não sabia como, até que um dia, não me lembro porque (acho que por causa de uma bola que caiu no quintal do menino rico), eles acabaram se conhecendo e se tornaram bons amigos (depois de algumas divergências, claro).

 

Essa ilustração me marcou muito. Eu achava fantástico o olhar do menino pobre. Me reconhecia nele. Nessa época eu tentava fazer amizade com alguns meninos mas eles me tratavam mal, por sermos de universos muito diferentes.

 

Segui minha vida mas a imagem desse menino permaneceu na minha mente. Sempre que alguém se destacava em minha vida e eu tentava me aproximar para me tornar seu amigo, era como se eu fosse aquele menino atrás das grades. Queria me aproximar, mas não sabia como.

 

Na maioria das vezes não deu muito certo, afinal você não escolhe amigos, amizade nasce de uma forma inesperada, sem data, nem hora. Mas algumas poucas vezes deram certo. E dão certo até hoje. O que é maravilhoso.

 

Pois bem, novamente aqui estou eu, atrás de uma grade, olhando para um menino e uma menina incrivelmente distantes de mim. Elas seguram um caderno na mão, um escreve, o outra, desenha. Um brinca, o outra, recorta. Um sonha, o outra, molda. Estão próximos, mas não se conhecem. Apenas eu, que observo de longe, reconheço os dois. O que é difícil, está cheio de gente nas casas onde elas vivem. Muita gente, gente demais.

 

 

Mesmo assim não as perco de vista. Consigo escutá-las. Elas falam. Falam muito. Quando falam pouco eu dou um suspiro. Quando entendo o que elas dizem, fico feliz, porque elas dizem coisas que respondem minhas dúvidas mais profundas.

 

Faço então alguns aviõezinhos de papel e taco pra eles. O menino vê, sorri e me devolve grande parte. A menina nem liga.

 

 

Um dia, mas não no mesmo dia, eles olharam para mim. Foi logo quando eu cheguei nesse portão. Mas eles baixaram o olho e me evitaram. Minhas roupas estão realmente surradas, mas só fui perceber isso muito tempo depois. Aí já era tarde, não poderia mais tornar a olhá-los novamente olho no olho. Mas acho que foi isto que me motivou a não desistir deles. Deveria esperar para que eles desejassem me ver. Por que? Não sei, meu coração pediu. E meu coração pediu demais, disse-me que o universo precisava que a gente se unisse e brincasse um pouco. Não dá para brincar de stop ou barra manteiga sozinho, não dá...

 

E esperei. Esperei. Esperei mais um pouco. E os escutei. Escutei. E escutei mais um pouco.

 

E todo dia passou a ser assim: brincar pela manhã em casa, almoçar, correr para o portão, os observar um pouco, correr pra escola, brincar com meus amiguinhos reais, correr de volta pro portão e, por fim, voltar correndo pra casa.

 

Com o tempo, o menino passou a ser mais cordial, até se aproximou do portão. Então aproveitei e dei uma oferenda pra ele, ele aceitou e me agradeceu. Fiquei feliz. Mas depois aos poucos ele foi sumindo. Rasguei um papel e escrevi e desenhei algumas coisas e fiz um avião que joguei pra ele. Ele olhou o avião, dobrou e colocou no bolso. Voltou para sua casa.

 

E não é que um dia eu escutei a menina pedindo uma oferenda? Corri na casa dos meus amiguinhos para ver se eles tinham e encontrei na casa de um, que me deu de bom grado. Imediatamente corri de volta ao portão e gritei pela menina. Ela me ouviu e timidamente respondeu, sem entender muito bem. Eu disse à ela que tinha a oferenda que necessitava e joguei no quintal. Ela foi lá, catou e voltou correndo para dentro de casa. Antes, deu uma olhadinha no portão para ver se me reconhecia. Acho que lembrou de algo, mas não sabia o quê. Mas mesmo assim sumiu dentro de sua casa.

 

Eu continuei indo ao portão. Mas com menos frequência. Tive uma ideia pra que eles viessem falar comigo. Seria a última ideia a ser colocada em prática. Então corri pra minha casa e me tranquei no quarto. Botei a ideia em prática. Era uma ideia tão boa que usei também com outros amiguinhos meus. Eles gostaram, ou pelo menos eu acho que sim.

 

Agora estou a pensar: vale a pena? Poderia ocupar minha vida com coisas tão mais úteis do que com duas pessoas que nem sabem ao certo que eu existo. Mas quer saber? Eu acho que vale a pena, tanto pra mim, quanto pra eles. Sou muito novo para entender como as coisas do mundo funcionam, mas sei, bem dentro de mim, que eu preciso deles. E eles de mim. Como sei? Sei lá, como diria Chicó, só sei que é assim.

 

Também pensei que, caso eles me olhem nos olhos, se eu continuaria atrás do portão ou percorreria toda a distância que nos separa para de alguma forma sentir suas presenças. É, amizade é bom, mas exige muitas responsabilidades. Você realmente se torna eternamente responsável por aquele outro que ao mesmo tempo em que é igual a você é diferente também. E demora. Amizade é como uma planta, até ela deixar de ser semente, virar broto, crescer, virar árvore e dar frutos demooooora... eu tenho uma árvore que já tá com 18 anos, sei como é demorado e exige responsabilidade. Mas não há nada melhor que colher os frutos e saborea-los sob sua sombra.

 

Olha, vou ser muito sincero, não sei como termina essa crônica. Tenho medo de dar um fim à ela. Ela fala de mim mas tem a responsabilidade muito grande de falar de você, leitor, também. Essas três crianças representam coisas importantes em suas vidas também, eu acho. Eu só não sei qual das três crianças você é, mas, se você parar pra pensar um pouco vai reconhecer. Me apague da crônica e insira você. Transforme o menino e a menina no que você quiser, pode ser um emprego, um carro, uma amizade, um animal, um objetivo, enfim, o seu objeto de valor. Viu como as coisas começam a ficar mais claras? Não ficaram? Duvido que você tenha gasto seu tempo lendo essa crônica enorme se não tiver se identificado com algo. As explicações estão todas com você, não comigo. Eu apenas seleciono palavras e imagens, o sentido apenas a sua cabecinha pode dar.

 

 

 

Está bem, eu sei que você está ansioso pra saber o porquê dessa crônica se chamar Chocolate Surpresa. Como eu já sabia que esta história não teria um final convincente, resolvi finalizar com uma barra de chocolate que eu comia muito quando era pequeno. Eu colecionava todos os álbuns e figurinhas desse chocolate. E sempre que lançavam um albúm novo, eu juntava as embalagens e mandava para ganhar o álbum. E ficava numa ansiedade danada esperando pela chegada dele. Levava 35 dias para chegar. Eu controlava o calendário para saber quantos dias ainda faltavam. E esperava. Esperava. Esperava... Enquanto ele não chegava, eu saboreava o chocolate. Era delicioso e nunca mais fizeram nenhum chocolate tão bom quanto esse.

 

Entendeu? Não? Bem, não importa, como diria Clarice Lispector, não se preocupe em entender, viver ultrapassa qualquer entendimento.

 

 


 PS: a autoria desta crônica é do Rubens menino. Eu acreditava que ele já havia crescido, mas descobri recentemente que não. E ele está me fazendo passar muita vergonha. Mas estou gostando. É bom recordar a infância de vez em quando.

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publicado às 02:28

Vamos aprender a ler a Arte?

por ornitorrincoquantico, em 01.05.09

 

Depois que entrei na universidade descobri que era muito analfabeto.

Descobri que era um analfabeto artístico.

E que não estava só, praticamente todos nós somos.

As escolas, em particular as brasileiras, não dão tanto valor à área de Artes. Ela é a mais maltratada de todas, tanto que as próprias universidades que formam artistas e educadores artísticos formam péssimos profissionais. Até existe vontade de fazer o melhor pela área, mas um músico se forma sem conhecer nada de outras áreas da arte, como pintura, teatro, dança, cinema, etc., e estes também! Todos eles saem ótimos criadores, possuem toda a técnica de criação e são capazes de criar ótimas obras. Mas não sabem ler a arte. Não sabem ler músicas, pinturas, filmes, esculturas, teatro, dança, moda, design... E não sabendo ler, também não sabem ensinar a ler e na maioria das vezes nem percebem que possuem essa limitação.

Não quero generalizar, é claro que existem pessoas que corrigiram isso e dedicam sua vida a ensinar outros artistas a também aprender a ler Arte. Foi graças ao trabalho de Anamelia Bueno Buoro, em especial o seu livro “Olhos que pintam: a leitura da imagem e o ensino da arte” que descobri o quanto eu ainda precisava aprender para aprender a ler imagens. Desde então minha visão artística mudou radicalmente.

Acostumamos a nos deter apenas em pequenos detalhes e não damos a devida atenção que uma obra de arte necessita. Com isso, criamos preconceitos, raiva, indiferença e julgamos a obra apenas como boa ou ruim. Ideias como “Pintura moderna é um lixo, não dá pra entender nada” ou “isso é tão idiota que até uma criança faz” acaba virando rotina no nosso julgamento artístico.

Eu odeio isso! Por isso venho tentando aprender um pouco mais para poder aproveitar melhor tudo o que os grandes artistas (e os pequenos também, oras) querem nos dizer, incluindo até o que eles não sabem o que querem dizer...

Mas não me contento apenas em querer aprender só para mim. Quero passar isso também aos meus amigos e às pessoas que estão dispostas a modificar a forma de ler textos artísticos, porque é maravilhoso poder compartilhar a beleza da arte com outras pessoas. É assim que a arte nos auxilia e nos modifica e é assim que alimentamos de verdade nosso espírito crítico.

Ainda estou aprendendo, estou no começo da minha jornada que provavelmente será eterna, mas já quero começar a encarar a Arte de frente e tentar descobrir os mistérios que ela esconde de forma tão engenhosa. Para isso, pretendo começar a realizar algumas análises de obras de conhecidos autores e tentar entender o que eles quiseram passar para nós com seu trabalho. Minha ferramenta de trabalho será a semiótica e a análise do discurso. Um absurdo para alguns teóricos da área da linguagem que consideram essas duas teorias tão diferentes. Mas as duas se emaranharam na minha formação de tal forma que seria incapaz de separá-las. Mas também escrevo para pessoas simples ou que se disponham a ser simples. Não quero complicar com teorias complexas, os verdadeiros protagonistas serão os artistas que me dispuser a analisar.

Também não será nada muito profundo e extenso. Aliás, nem confiem muito no que eu escrever, tenho certeza que devo errar muito. O que quero é apenas dar o pontapé inicial para que depois quem se interessar prossiga e invista de verdade na análise.

Se eu conseguirei frutos ou ao menos um leitor que se interesse não sei. Mas ao menos deixo algo que creio ser útil um dia para alguém.

 

massss.....

 


Por que é importante ser alfabetizado em Arte?

Porque a Arte está em todo lugar da nossa vida. Está na pintura, na música, na dança, nas esculturas, no cinema, nas fotografias, na arquitetura, na roupa que a gente veste, na geladeira da sua casa, no ladrilho do seu banheiro, na embalagem do seu leite condensado, no seu corpo e numa infinidade de outros lugares. Nunca percebeu? Pois repare... Se ela está tão presente, então porque a gente não aproveita e tenta a entender melhor? Mesmo que seja apenas para melhorar nossas escolhas matutinas de qual meia combinar com nossa calça e camisa...

 

Enfim, quem tiver interesse, venha! E ajude também sempre que tiver vontade.

 

Pois bem, para começar essa brincadeira eu escolhi Andy Warhol.

 

 

Pode parecer estranho começar com um pintor tão recente, com tantos outros grandes artistas do passado, mas eu gosto de ser diferente e prefiro começar de trás para frente, embora não seguirei nenhum caminho fixo.

Nas últimas férias assisti um documentário sobre a vida e o trabalho dele e, conjugando com o que venho estudando de análise de imagem, descobri coisas fantásticas.

Deixo uma pequena amostra do que virá nos próximos dias:

 


 

Tentarei publicar alguma coisa ao menos uma vez por semana. Ao longo das semanas tentaremos conhecer um pouco sobre a vida do autor escolhido, sempre centrando na análise de seus trabalhos. No fim, tentaremos encaixar o autor na linha do tempo da arte e o que ele representa para a História da Arte.

 

Espero que gostem, até mais!

 

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publicado às 22:15


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