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Conto: Menina Cecília e a Virgem Maria

por ornitorrincoquantico, em 19.01.07

 

Menina Cecília e a Virgem Maria

 

O sol nascia no horizonte quando Cecília passou correndo pela estrada de terra que a levaria até a escola. Cecília era uma meninota de sete anos que cursava o primário, morava com os pais em um casebre localizado em um pedaço de terra no sul de Minas Gerais e não possuía irmão algum. Seus pais trabalhavam de qualquer coisa e viviam com quase nada. O maior sonho deles é que a filha tomasse gosto pelos estudos e no futuro pudesse tirá-los da vida pobre e miserável em que viviam.

A escola ficava umas duas horas de caminhada da casa de Cecília e, como sempre, a menina estava atrasada, por isso corria feito uma pantera pela estrada, deixando para trás uma cortina de poeira. Seu pensamento estava no pão amanhecido que comeria quando chegasse na escola. Ela trajava seu uniforme azul marinho e uma blusa de tricô branca velha e furada. Seus pés calçavam uma sapatilha que ganhou no natal passado de sua quase sempre ausente madrinha e na cabeça usava um gorro lilás que encontrara a algum tempo atrás em uma lixeira da cidade. O caminho que percorria era o mesmo todos os dias. Sua vidinha era uma monotonia gostosa: de segunda a sexta acordar cedo, ir à escola, voltar, almoçar seu feijão com farofa e mistura e passar a tarde brincando com Serafina, sua boneca de pano e borracha, feita por ela mesma com restos de lixo dos outros. No sábado ela dormia até mais tarde e quando acordava brincava de princesa com as galinhas e domingo ia com os pais na missa matinal na capela da cidade. Eles eram católicos fervorosos e a menina era muito devota de Nossa Senhora. Ela já sabia até rezar o terço sozinha, sendo o orgulho dos pais, que a exibiam como um exemplo de fé e devoção.

Cecília estava quase chegando quando um fato inusitado aconteceu: alguém a chamou. A menina se assustou tanto com esse chamado que até caiu. Ela olhou para o lado e viu uma fumaça branca entre várias árvores e, firmando um pouco mais a vista, percebeu um vulto humano. Ela não sabia se corria ou ia de encontro ao vulto. Altanando-se gritou:

- Quem... quem é que tá aí?

- Venha até mim, candura de menina!

Cecília lembrou-se dos conselhos maternos de nunca falar com estranhos, porém a curiosidade era mais forte e a fumaça havia de certo modo hipnotizado-a. Ela foi se aproximando vagarosamente e aos poucos a fumaça dissipava e o vulto foi humanizando-se. A primeira coisa que a garota identificou na pessoa foi que ela era uma mulher de vestido branco comprido e usava um pano azul que a cobria. Foi então que Cecília levou o maior susto de sua vida, pois reconheceu no rosto da mulher a face de Nossa Senhora. Ela então, de joelhos, começou a rezar uma Salve Rainha.

- Meu amor, sou Maria, Nossa Senhora, vim por amor para te ver!

- Meu Jesus, é milagre minha mãe? – ela começou a chorar – Eu não mereço!

- Não chores, minha flor ! Vim para trazer a paz!

- Mãezinha! Oh! Eu...eu...

- Eu te escolhi para dar testemunho de minhas palavras. Infelizmente tenho que ir mas, amanhã, quando você passar por aqui, retornarei a te ver. Mas atenção, venhas só. Não deixes que ninguém te acompanhe. Agora vás e não olhes para trás.

- Tá, sim, eu, eu prometo que sim. Bença mãe, bença! Inté aminhã.

Cecília continuou o seu caminho. Quando chegou na escola, estava em êxtase.

- Qué qui foi minina? Por modo de que qui ocê tá assim cu essa cara de bestaiada? – perguntou a faxineira da escola.

- Hann?

- Indoidó as idéia di veiz?

- Num foi nada dona Edersonia, eu tô bem. Só tô um pouco cansada da camiada.

- Intoncê entra logo pra crasse qui ocê tá atrasada, fia da peste.

Durante toda a aula Cecília permaneceu aérea, olhando para o nada e tentando entender os acontecidos. Mais tarde, quando chegou em casa, quase esqueceu de comer o angu com feijão que a mãe deixara de almoço para ela. Sua mãe trabalhava juntamente com o pai em uma fazenda e só voltava a noite. Cecília fremia de medo, nem quis brincar, correu para seu quarto e agasalhou-se na cama. Dormiu e sonhou com anjos que tocavam arpas e recitavam os salmos.

- Acorda minina, uai, qui foi? Tá passando mal? – perguntou a mãe quando chegou a noite.

- Não, mãe, tô não!

- Já te falei pra mi chamá di mamãe, minina, falá só mãe é farta de respeito. Mas mi fala, ocê num é di ficá dormindo. Cê tá passando mar, num tá? Num qué mi falá? Oia, si ocê num falá que tá sentindo eu mando seu pai senta o máio nocê, e oia qui ele tá cansado e vai ficá muito brabo. Uai, febre cê num tem prumode quê cê num tá quente. Intncê vai falá ou num vai?

- Dodói eu num tô mais ...

- Mais o quê minina?

- Mais nada mamãe, tô cansada de tanto brincá.

- Intoncê vai tomá banho qui ocê tá incardida.

No outro dia a virgem apareceu novamente para Cecília no mesmo lugar e na mesma hora. Cecília não contou nada para os pais e continuava maravilhada com o milagre.

- Que bom você ter me obedecido. Você foi escolhida para anunciar a boa nova a todo mundo

- Oh minha mãezinha! Ave Maria cheia de graça...

- Ouça o que vou lhe dizer: irei aparecer para você apenas mais uma vez amanhã e, quando isso acontecer, irei dar-lhe uma grande revelação para que você transmita a todo o mundo. Você foi escolhida para ser a anunciadora desta grande notícia, mas atenção, você deverá estar sozinha novamente para que, somente você, receba a boa-nova. Depois desses acontecimentos você deverá espalhar para todos que conhecer e deverá recomendar visitas a este lugar, que tornará sagrado a partir de amanhã. Você entendeu, meu amor?

Cecília fez que sim com a cabeça.

- Ótimo, agora vás e não olhes para trás!

A menina foi embora, porém um pouco cismada. A santa havia lhe dito que ela deveria continuar indo sozinha, mas Cecília queria tanto compartilhar com a mãe esse momento tão especial. Depois do retorno da escola, a garota passou a tarde inteira matutando no que deveria fazer. Acabou cochilando no meio do galinheiro. Durante esse cochilo ela sonhou que estava em uma igreja muito bonita e repleta de flores. Ela pegou uma rosa e correu para colocá-la em uma imagem de Maria, que estava atrás do altar. Foi quando ela escutou um coral de anjos e percebeu que no fundo da nave havia uma mulher vestida de branco que lhe acenava. Cecília foi ao seu encontro e quando estava próxima da mulher, deu-lhe um abraço. E esta lhe falou com ternura em seu ouvido: "Sou Maria, mãe do salvador!"

Cecília espantou-se porque achava esta mulher muito diferente da mulher que via todos os dias de manhã, então indagou: "Mas a Senhora tá tão diferente!" A mulher apenas sorriu e disse: "Amanhã cedo leve sua mamãe com você para a escola, e mostre a ela a mulher que tens visto. Seja uma boa filha e conte tudo o que sabe à sua mamãe!"

Neste momento Cecília acordou sob pontapés do pai.

- Acorda priguiçosa, isso num é lugá de gente durmí. Vá cassá afazê na cozinha!

Naquele dia, antes de dormir, Cecília contou toda a sua história à mãe, que achou que a filha estivesse mentindo. Depois de muita insistência, Cecília convenceu a mãe para levá-la à escola no outro dia e assim mostrar que estava sendo sincera.

- Óia aqui minina, se ôce tivé mangando dieu podi tê certeza qui vai levá um côro brabo aminha!

- Mais mamãe, é verdade verdadeira! Eu vi a virge perto da fazenda do Sô Marco. Ela era linda, sortava uma fumaça branquinha, fumaça de cér, e tinha um cheirinho tão bão de rosa. E ela é linda, mamãe, a senhora vai ver!

- Arre, garota, tá bem. Mais ó, num vô contá nada pru seu pai, tá certo, nem ocê vai incomodá o véio com esse seu destempero, tá certo, minina sem-vergonha?

- Tá bão mamãe, eu prometo!

A mãe não acreditou nem um pouco na história da filha, só aceitou acompanhá-la no outro dia porque precisava conversar com sua professora, pois faltara na última reunião de pais. Quanto ao desatino da garota, já estava arquitetando uma boa surra com vara de bambu.

No outro dia acordaram cedo e seguiram estrada afora. Quando aproximaram do local da aparição, indicado por Cecília, a mãe levou um enorme susto a perceber a fumaça branca.

Mais num é possiver que ocê tá certa. Meu Jisuis, num pode sê!

- Mais é mamãe, é! Agora a senhora fica aqui quietinha inquanto eu vou na frente prepará o caminho, adispois a sinhora vai e pedi uma bença, tá!

Cecília correu até a santa e esta, sem perceber a presença da mãe, começou a conversar com a menina.

- Cecília, hoje é um dia muito especial para a humanidade! Hoje você...

Neste momento a mãe da garota apareceu, correndo e chorando muito.

- Ai minha mãe, Nossa Senhora di Aparicida, óh mãe querida, me dá uma bença, um conforto! Meu Jisuis gardeço di coração esse momento tão feliz! Milagre, meu Deus, milagre! Minha me abençoa, pru favô, cura as varize de minha perna que eu tô sofrendo muito minha mãe. Cura também meu marido, qui tá cum muita dor nos quarto e tá sofrendo dos nervro, num tem médico que cura ele, mãe, só a sinhora tem poder. Pruveita também e tira as lumbriga da minha minina, sarva a dona Umbelinalda da morte, e...

A mãe agarrou a santa pelos braços e caiu de joelhos beijando seus pés. Mas quem levou o maior susto foi Cecília, pois quando a mãe olhou a santa de perto, olho no olho, as duas começaram a gritar feito mulheres insanas.

- Qui qui foi, mãe, qui quê a sinhora tá gritano?

A mãe, em um acesso de fúria, arrancou a túnica da santa, que por baixo vestia uma blusa cavada e mini-saia. Cecília não estava entendendo nada, e continuava a indagar a mãe sobre o que estava acontecendo.

- Essa muié num é santa nem aqui nem lá na China, minina!

- Como não, mãe? Ela num é a Virge?

- Virge? Virge essa aqui dexô de sê fais muito tempo. É uma cachorra, isso sim!

A moça ficou muda e não sabia o que dizer.

- Mais quem é ela intão mãe?

- É a Luiza, filha do excumunguento prefeito da cidade. Qui que ocê quiria cu a minha fia, cadela sem vergonha? Quiria robâ? Seis num tão robando muito na prefeitura e agora tem que robá dus inuncente da rua?

- Calma dona, se liga, tá? Foi tudo idéia do meu pai. Se quiser, vai dá um lero com o veio lá na prefeitura, tá ligado? Eu tô fora disso, não sei de nada!

- Cecília, arruma as traia, hoje cê vai fartá da aula pra mode di í cumigo na cidade passá essa história a limpo. E ocê, bruaca fia duma égua, fica quetinha si num quisé levá uns cascudo na oreia!

Meia hora depois estavam na prefeitura, a mãe colérica gritava procurando o prefeito. Quando o segurança ia prendê-la para libertar a filha do prefeito, o excelentíssimo apareceu e, suando frio, imaginando o que teria acontecido, mandou que entrassem no seu gabinete. Quando a mãe entrou na sala, jogou a moça no chão e deu-lhe um chute nas nádegas.

- Óia aqui sô disgraçado vagabundo, eu quero que mi ixprique o quê qui foi qui aconticeu, tim-tim por tim-tim! E ocê num se faça de desintidido pru modi di que eu sei qui ocê sabe du que eu tô falando!

- Calma, minha senhora, é claro que eu posso explicar, mas não precisa ficar tão nervosa. Sente-se um pouco. A senhora aceita um cafezinho?

- Vá pro inferno cu teu cafezinho! E tá muito bão aqui donde eu tô, dá pra ti encará de perto, dá preu vê tua cara de mintiroso, cachorro, sem-vergonha, salafrário, ladrão, fio duma...

- Calma, minha senhora, calma!

- Vai pedi carma pra égua da tua mãe! Eu quero sabê o qui é que ocês queria aprontá cá minha fia! Seis ia robá ela, num ia? Fique sabendo que eu vou botá ocês no pau! Vô hoje memo procurá a justiça!

- Ooolha... – engasgou-se o prefeito, que já estava vermelho – bem, não mentirei para a senhora! Acontece que a nossa cidade está com uma dívida enorme e nós não estamos tendo mais recursos para supri-la, eu até corro o risco de ser preso. Nós resolvemos que o turismo seria um ótimo recurso financeiro para os cofres públicos.

- Quê? Ocês quiria fazê esse tal de turismo ca minha fia?

- Não, minha senhora, o nosso plano era fazer com que acontecesse uma aparição mariana a uma criança, desse modo nós poderíamos divulgar a todos os cantos que aqui aconteceu um milagre e assim apareceriam inúmeros romeiros e curiosos, aumentando nossa renda. Então eu disfarcei minha filha e, por sorte, sua filha foi a escolhida.

Ao ouvir isso, a mãe ficou tão nervosa que começou a bater no prefeito e só parou quando foi imobilizada pelo segurança.

- Cachorro carnicento, tá pensando que a minha fia é o quê, paiaça? Ocêis queria fazê a gente de boba? Ainda pru cima ia menti pro coitado do povo, que já sofre feito condenado do inferno. Isso lá na minha casa chama rôbo, rô – bo!

- Tudo bem, eu pago quanto a senhora quiser para continuar o nosso plano. Posso deixá-la rica!

- Mais será o Benedito? Qué qui eu vire ladrona também! Vô é chamá os meganha pro cê, bicho disgramento!

- Nem pense em fazer isso, a senhora por acaso não sabe que eu posso acabar com a raça da senhora e da sua sua família?

- Não, mamãe, não! Num dexa ele matá nois não! Eu num quero morré! – chorou Cecília, que até então estava escondida atrás de uma prateleira.

- Pode dexá, minha fia, antes dele tentá nos matá eu mato ele premeiro!

- Então, minha senhora, eu só tenho mais uma proposta a lhe oferecer. Eu pagarei para a senhora uma fortuna, desde que me dê seu voto de silencio e depois junte suas coisas e mude-se daqui para bem longe.

A mãe refletiu um pouco e viu que não era uma má idéia.

- Tão tá, eu calo a boca e me mudo. Para mim vai cê um alívio fugi dessa imundice de cidade cheia de porcos. Vô podê realizá o sonho do meu marido, que é morá perto das parentada dele, lá no Paraná. Só num intendi uma coisa, se a prefeitura tá sem dinheiro cumé que ocê vai me pagá?

- Robando, num é mamãe? – disse Cecília.

- Ora, isso eu resolvo – falou o prefeito pegando seu talão de cheques.

Depois disso a mãe e a menina retornaram para casa e a tarde contaram ao pai o acontecido. No dia seguinte pediram as contas em seus serviços, venderam as terras e foram até a escola, para pedir a transferência da filha. O pai avisou os parentes pelo telefone e arrumou em uma carroça todos os seus pertences. Antes de partirem, Cecília pediu que rezassem um terço em agradecimento a Nossa Senhora, por ela tê-los ajudado. Depois da oração, seguiram viagem sem olharem para trás.

O prefeito não desistiu do seu plano. Chamou sua filha para combinarem o próximo passo.

- O nosso erro foi ter escolhido uma menina para o serviço. A danadinha fofocou tudo para a mãe!

- Qualé, cara, tá ligado? O você quer? Devo pegar outra menina?

- Não, desta vez vamos fazer direito. Em vez de uma menina pequena você vai escolher uma mais grandinha, mais obediente. Você vai ver, dessa vez não tem erro!

Três dias depois lá estava a falsa santa esperando sua nova vítima. Agora era uma moça, filha de um roceiro, tinha cara de bobinha e deveria ter uns treze anos. A filha do prefeito já esta pronta para o bote.

- Olá, minha filha, meu amor! Venho para lhe trazer a paz!

- Mais quem é a senhora?

- Eu sou a Virgem!

- Jura? Mas com essa idade? Parabéns! Eu perdi a minha mês passado no dia da quermesse, atrás da igreja.

 

 

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publicado às 16:32


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Amade a 23.03.2014

Cecilia e a virgem maria
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Amade a 23.03.2014

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